sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

A cozedura do pão e os rituais populares


Com a devida vénia, transcreve-se o magnífico texto que a nossa amiga Natércia Duarte publicou na sua página de facebook há uma semana atrás, e que uma dezena de outros amigos já partilhou, com muito impacto. Um grande abraço da ALDRABA à Natércia.

Quando o pão começava a escassear na arca de madeira, era chegada a hora de ir com a avó a casa da senhora da aldeia que era a encarregada de “dar as vezes”. “A Gisela, a Rosinha e a Maria José são uma vez, a Tonica e a Silvina são outra vez… A comadre Felizarda, só tem vez com a Bia”. Apesar de toda aquela conversa me parecer falada em código, a avó vinha de lá com a marcação do dia e da hora da próxima cozedura no forno comunitário da aldeia.

Na noite anterior ao dia combinado ia buscar a lêveda, o pedacinho de massa da última amassadura, religiosamente guardado no armário, dentro de uma tigela branca enfeitada de raminhos azuis. Misturava-a com um pouco de água e estava preparado o fermento para o futuro pão.

Quando eu abria os olhos para saudar o novo dia, já a minha avó estava sentada na cozinha, de avental branco, a peneirar. A água aquecia na panela de ferro poisada ao lado das brasas que nunca morriam na lareira… A farinha esvoaçava e caía no alguidar em gestos redondos e leves… A água passava da panela ao pucarinho de esmalte azul e derramava-se suavemente na farinha… As mãos da avó dançavam ao som de uma música que só ela ouvia… A massa branca fazia bolhinhas que eu sonhava poder rebentar com os dedos…

No final tirava um bocadinho da massa e colava-o na parede do alguidar. “Tem que crescer até aqui” – explicava-me a avó. Tapava o alguidar com um pano, fazia com a mão o sinal da cruz e murmurava: “Cresça o pão na massa como Nossa Senhora na graça”. Eu verificava que realmente a massa crescia sempre até ao sinal marcado no alguidar e, por isso, concluía que a Nossa Senhora da minha avó devia ser grande conhecedora dos mistérios da massa do pão!

Tendidos os pães, eram aconchegados em camas de lençol branco, nos tabuleiros grandes de madeira e aí ficavam para fintar. As labaredas da lenha de esteva e aloendro já lambiam a boca negra do forno. Depois perdiam o vermelho, desistiam de ser chama para dar o lugar ao pão. Varria-se o chão de ladrilho e a avó fazia um sinal nos seus pães para os reconhecer depois de cozidos. Era eu que escolhia o sinal que podia ser um furinho feito com um pauzinho de esteva descascado, uma cruz ou uma beliscadela.

Com a pá de carregar o pão, e depois de fechada a porta do forno, a avó voltava a fazer o sinal da cruz: “Nosso Senhor te acrescente para dar para muita gente”. Depois esperávamos. As mulheres conversavam. Conversas com cheiro doce de pão, com aroma bravio de esteva ou com sabor amargo de aloendro.

E quando a porta do forno se abria, no meio dos pães grandes havia sempre um pequenino – um merendeiro, como lhe chamava a avó. Ela tirava-o do forno, dava-lhe uma palmadinha como se ele fosse um recém-nascido e dava-mo. Era o meu pão. Eu abria-o, pingava-o de azeite, polvilhava-o de açúcar e ficava ali sentada, mastigando devagar para que aquele sabor, mesmo sem prece divina, ficasse para sempre agarrado à minha boca.

Natércia Duarte

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