sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Honra a Luís Kalidás Barreto



 








Chegou-nos hoje a triste notícia do falecimento de Luís Kalidás Barreto, aos 88 anos, notável exemplo de cidadania e de cultura.

Kalidás Barreto cruzou-se com a associação Aldraba em 2006, durante o nosso VI Encontro realizado em Aljustrel em 8/4/2006, que assinalou o centenário do seu pai, Adeodato Barreto. A nosso convite, Kalidás participou na mesa da sessão solene que encerrou esse Encontro, em conjunto com o Presidente da Câmara de Aljustrel, o Presidente da Junta de Freguesia local e o Presidente da Direção da Aldraba.

O Luís Kalidás tinha nascido em 1932 em Montemor-o-Novo, mas desde jovem a sua família se radicou em Castanheira de Pera, onde ele viveu até hoje.

Como contabilista, trabalhou em várias empresas de lanifícios, setor industrial que prosperava na região. Muito cedo se começou a manifestar ativamente na defesa dos seus colegas de trabalho, tendo chegado a líder do Sindicato dos Lanifícios dos distritos de Leiria e Coimbra.

Como militante antifascista, colaborou em 1958 na campanha eleitoral do General Humberto Delgado e, em 1969, nas eleições legislativas pela CDE.

Em 1970, participou na criação da Intersindical, na semi-clandestinidade, e viria a ser dirigente nacional da CGTP depois de 1974.

Em 1975, foi eleito pelo Partido Socialista deputado à Assembleia Constituinte. O Presidente Jorge Sampaio agraciou-o em 2004 como grande oficial da Ordem da Liberdade.

Na região da serra da Lousã, Kalidás foi sempre um grande ativista do associativismo e do intermunicipalismo, e escrevia regularmente na imprensa local.

A Aldraba associa-se às manifestações de pesar que têm vindo a multiplicar-se a propósito da morte do Kalidás Barreto, e transmitiu já as nossas condolências à sua filha Emília.

JAF


sábado, 24 de outubro de 2020

O livro como património

(...) a civilização que inventou o livro tal como até aqui o conhecemos, inventou também as condições requeridas para a sua leitura e que essas nos modelaram antropologicamente durante séculos e constituem um património cultural que precisamos de preservar. 

Pois quem inventou o livro inventou o silêncio da leitura; inventou essa forma íntima de temporalidade que torna o encontro com o livro indissociável do encontro connosco próprios; inventou a atenção e a curiosidade; inventou um regime social onde a atividade intelectual era admitida; inventou o direito universal à alfabetização; inventou o indivíduo e a vida privada; inventou a confiança na consistência da linguagem e as bibliotecas; inventou os sistemas críticos e hermenêuticos que garantem não só a legibilidade dos livros, mas a compreensão do mundo; inventou o humanismo e a liberdade de expressão, que é sempre inseparável da liberdade de ser. 

O livro acompanhou o nascimento e expansão das línguas modernas do Ocidente, e assistiu ao desenvolvimento das suas possibilidades expressivas. 

Quem inventou o livro inventou uma certa forma de produzir história e também a figura de leitor que ainda somos. 

Temo-nos de perguntar o que podemos fazer para valorizar este extraordinário património.

José Tolentino Mendonça, in "Expresso", 24/10/2020

sábado, 17 de outubro de 2020

Não destruam o nosso passado mouro!


 







Conforme assinalou o historiador Rui Tavares no "Público" de 28/9/2020, entre a entrada das primeiras tropas muçulmanas na Península Ibérica (ano 711) e a reconquista cristã do Algarve (1249) mediaram praticamente cinco séculos e meio.  "Momento único da história da civilização, quando centros de conhecimento como Córdova faziam ponte entre Oriente e Ocidente e preservavam boa parte da literatura legada pelos gregos antigos" traduzida para árabe e depois retraduzida para latim, comenta o mesmo R.Tavares. E prossegue esse autor: se em Portugal a riqueza da filosofia medieval e renascentista é principalmente judaica, "a poesia que os muçulmanos nos legaram é da mais bela que foi escrita e cantada neste território".

Apesar da importância que o referido período teve em Portugal, quase não há monumentos desse nosso passado (R.Tavares cita os poucos exemplos que restam no Castelo de Silves, no Palácio de Sintra, na Matriz de Mértola, e nuns arcos do Castelo de São Jorge).

É neste contexto que tanto chocou a recente notícia de que a Direção-Geral do Património Cultural se preparava para autorizar o desmantelamento de algumas importantes estruturas da Grande Mesquita de Lisboa (séc. XII) que foram descobertas em escavações arqueológicas em curso nos claustros da Sé de Lisboa. As intenções da DGPC foram denunciadas pelo Sindicato dos Trabalhadores de Arquitetura.

Duas arqueólogas da DGPC que trabalham nas escavações da Sé há mais de 20 anos, Alexandra Gaspar e Ana Gomes, manifestaram-se corajosamente contra tais propósitos, que assentavam em considerações sobre a "segurança estrutural da Sé", sem se cuidar de procurar soluções técnicas que contrariassem o problema.

Em paralelo, correu um documento público de protesto contra os intentos da DGPC, subscrito pelos mais destacados técnicos portugueses de arqueologia, em que se incluía o conceituado Santiago Macias, associado da Aldraba.

O diretor-geral da DGPC, Bernardo Alabaça, ainda veio pressurosamente anunciar a convocação, sobre esta matéria, da secção de património arquitetónico e arqueológico do Conselho Nacional de Cultura, para emitir um "parecer vinculativo". Mas a ministra da Cultura, em comunicado publicitado em 14/10/2020, veio pôr fim à controvérsia, anunciando que "face aos mais recentes achados arqueológicos, e tendo em conta o valor patrimonial das estruturas descobertas (...) decidiu, em diálogo com o Patriarcado de Lisboa, que os mesmos devem ser conservados, musealizados e integrados no projeto de recuperação e musealização da Sé Patriarcal de Lisboa".

Esta última decisão foi já aplaudida pelas vozes mais lúcidas do setor, a que a Aldraba se vem associar modestamente. E queremos sublinhar que vale sempre a pena resistir e combater as quotidianas iniciativas de atentado ao património, venham elas de onde vierem...

JAF