Desde a nossa juventude que fomos, integrados em tertúlias, iniciados na degustação de um petisco “único, insólito e quase inédito”, no dizer do gastrónomo José Quitério, que as gentes locais chamam caneja d´infundice.
O início da sua confecção na Ericeira, é, segundo alguns, prática velha de alguns séculos seguramente. A mais antiga receita escrita datará de 1890, e ensina como a elaborar.
A origem do preparado é atribuída, por alguns, a povos nórdicos, islandeses, noruegueses ou mesmo esquimós, outros, localizam-na na Ericeira e fruto do acaso. A primeira hipótese é possível, pois é prática desses povos, devido às agrestes condições climatéricas que os impedem de pescar durante longos períodos, enterrar o pescado que hão-de comer posteriormente. Não ignoremos também, que o acaso tem dado azo a práticas culinárias inesperadas.
A caneja, espécie particular de tubarão ou cação (se ele nos come é tubarão, se nós o comemos é cação…), também conhecido por pata rocha ou pinta roxa, porque de facto tem pintas escuras, deverá ter um tamanho de cerca de 60 cm para o nosso preparado.
Baldaque da Silva, referência nas pescas e pescados portugueses, escrevia, em 1891, que “é muito estimada pelos pescadores, porque, depois de seca, embora não ofereça a qualidade da pescada, presta-se a uma alimentação tolerável para as ocasiões de necessidade”.
A sua preparação é geralmente deixada ao cuidado dos homens mais antigos da terra. Lembramo-nos do Zé de Barros, do Branquinho, do Gabriel, entre outros, que já nos deixaram.
Sem nos determos em pormenores da sua preparação, largamente documentada em diversos tratados culinários e prontamente postos em causa pelos “verdadeiros preparadores”, diremos que o peixe, que em fresco é desventrado e muito bem lavado com água salgada, sendo totalmente limpo de qualquer vestígio de sangue, é cortado em postas, sem contudo lhe ser cortada a espinha. Depois de embrulhado em pano, é sujeito ao período de infundice, mais ou menos dilatado (entre uma a duas semanas), condicionado pelo Inverno mais ou menos quente, bem como pela maior ou menor “veterania” dos destinatários de tal “comedoria”.
Após a cozedura, as postas do seláquio apresentam uns tons de madre pérola. Temperadas estas e as batatas cozidas que acompanham, unicamente com um bom azeite, que poderá mudar de cor para um tom mais esbranquiçado, isto dependendo de um maior período de preparação, sente-se a cada dentada um ligeiro cheiro amoniacal, que “adoça” o vinho tinto, sempre criteriosamente escolhido. As postas desfazem-se em falhas e terão de apresentar obrigatoriamente uma cor branca.
A garantia de que o preparado foi feito convenientemente, é-nos assegurada pela inexistência junto à espinha de qualquer coloração rósea ou acastanhada. Se tal acontecer é liminarmente rejeitada aquela caneja.
De reter, também, os aspectos sociológicos ligados a esta prática. O “entronamento dos novatos”, prática que tem caído em desuso, consistia em pontapear um fogareiro de barro, no qual se tinha posto previamente a grelhar umas febras, dando desta forma um sinal, que significava renegar outros “prazeres da carne” que se sobrepusessem às delícias da caneja.
Também a forma como era comida a iguaria, merece a nossa atenção. Falamos de tertúlias, geralmente compostas de 12 a 16 ericeirenses, onde só excepcionalmente havia convidados “lavagantes”, nome dado aos banhistas ou não locais. Nestas almoçaradas se conversava sobre os usos e costumes, comparava-se a qualidade dos produtos apresentados naquele dia (sobretudo a caneja, o azeite e o vinho) com os de anteriores petisqueiras. Selavam-se amizades, construíam-se solidariedades, eram tempos de harmonia e bom convívio, que se mantêm, ainda que com novos formatos e já mais abertos a apreciadores sem qualquer distinção.
Em tempos passados, pensou-se em constituir uma Confraria da Caneja, pelo receio da extinção desta imagem de marca da Ericeira. Foi na altura considerado que algo tão popularmente genuíno se poderia tornar elitista com essa formalização, e foi congelada a ideia.
Hoje, a vitalidade que se observa na sua prática, que se arrisca a tornar-se numa mais valia comercial, leva a que esse temor tenha desaparecido. Considera-se que, independentemente dos aspectos económicos que daqui resultem, o património imaterial que constitui a sua longa prática, identificadora de uma região, nela enraizada ao longo de muitas gerações, deve ser alvo de reconhecimento e protecção.
Ao escrevermos estas despretensiosas linhas, procuramos, de alguma forma, contribuir para que esse património não se perca, através da sua defesa e promoção.
Luís Reis Ágoas
(Texto e fotografia publicados no nº 12 da revista "ALDRABA")