António
dos Olhos Tristes foi o único homem que eu conheci que sabia falar com os
bichos todos que há na vida. Mas todos. Todos mesmo.
E
quando falava com eles fazia uma voz tão triste, tão triste que as pessoas que
o ouviam ficavam a cismar se o António dos Olhos Tristes não teria nascido para
ser monge, ou eremita, daquelas criaturas que vivem a vida toda nas montanhas,
mais cerca do céu do que da terra, vestidos de silêncio, de paz e simplicidade.
Ou
então António dos Olhos Tristes em vez de pessoa devia ter sido talhado para
nascer árvore, daqueles sobreiros tristes, sozinhos, que a gente avista nos
descampados, de braços abertos como que a dizer salve-os Deus a maiorais, a
ciganos, a moinantes e uma enormidade de seres que levam a vida inteira à
procura dum lugar, dum sítio.
Nos
dias em que o calor escarchava as pinhas, sorvia a água dos pegos e riscava
faúlhas na lonjura da charneca, António dos Olhos Tristes sentava-se ao abrigo
de qualquer ramada, agarrava num tronco de marmeleiro e em meia dúzia de golpes
de canivete fazia uma figura que parecia mesmo um santo, enquanto o diabo
esfregava um olho. Não era bem uma cara de santo de igreja, era como que a
figura duma pessoa boa, duma pessoa triste, ora um homem, ora uma mulher, ora
uma criança, ora às vezes até um animal qualquer mas sempre com uma expressão
na cara e nos olhos que quem visse dizia logo: – É tal e qual um santo, só lhe
falta ser benzido! E era. Era mesmo assim tal e qual.
António
dos Olhos Tristes não tinha pai nem tinha mãe, era tão sozinho como um rio, uma
abetarda, uma lebre ou um vime. Nem os mais antigos sabiam donde é que ele
viera nem sequer o dia em que ele aparecera ali na nossa aldeia. Nem os mais
antigos falavam do seu passado, nem os mais antigos adiantavam fosse o que
fosse à história da sua vida. Ali aparecera e ali ficara, há tanto tampo já que
devia ser um velho e ainda era um jovem, tão bom e tão triste que devia ser
filho de todos os pais e de todas as mães que há no mundo e não tinha nem um
pai nem uma mãe só que fosse. Mas todos gostavam tanto dele, todos sentiam tão
no peito aquela alegria de estar ao pé dele, que António dos Olhos Tristes era
como se fosse assim um poucochinho pertença de todos nós.
A
minha mãe, então, gostava tanto dele quanto gostava de mim. O meu pai deixava
de comer metade da ceia só para que o António dos Olhos Tristes ceasse na nossa
mesa. Até o Mestre Manuel Regedor deixava a voz grossa que ele fazia quando
ralhava com os malteses e arranjava uma fala nova, muito mais sossegada e macia,
para conversar com o António dos Olhos Tristes: era como que uma voz de pai, a
fala que ele arranjava.
Podia
contar aqui muitas histórias, muita coisa passada com António dos Olhos Tristes
ou de quando ele ordenhou uma vaca taurina tão bem como um boieiro sem nunca
ter aprendido, ou de quando ele deu um beijo na cara do Chico Mudo e ele abriu
a boca, fez uma data de caretas e falou a única vez da vida dele a dizer – ó-bri-gá-du, ou de quando ele levou três
dias e três noites a malhar cevada branca na eira da Tia Almerinda Viúva, sem
dormir nem descansar, e quando acabou tudo só quis aceitar um cacho de uvas com
pão. A Tia Almerinda Viúva contava que enquanto punha as uvas na boca, bago a
bago, devagar, o António dos Olhos Tristes ia mudando a cara, mudando a cara
tanto e de tal maneira que ao fim dela estar a olhar para ele um quarto de hora
era como se estivesse a olhar a cara do seu homem, igualzinho sem tirar nem
pôr. Ela ainda hoje afiança que viu a cara do seu homem na cara de António dos
Olhos Tristes, e há que séculos que isto foi. Quem é que pode negar? Quem é que
viu? – Se só ela é que viu, só ela é que pode afiançar ou desmentir.
Podia
ainda falar de outras histórias, umas tristes, outras esquisitas e estranhas,
que ouvi contar ou que aconteceram mesmo ao pé de mim. Duma mão cheia delas que
me lembro escolhi estas 15 que irei discorrendo consoante a lembrança que tenho
hoje.
A
primeira foi quando António dos Olhos Tristes falou com uma lebre que saltou
dum barranco.
Os
homens tinham acabado de fazer meio dia a roçar mato, mesmo na extrema da
herdade onde começa o barranco que vai dar aos foros da Chaminé. Sentados uns,
estiraçados outros, enrolavam os tanganhos do tabaco nas mortalhas
có-có-ró-có-có. Um ou outro bebia da água, mais morna que caldo de beldroegas,
pelo cocharro.
Foi
nisto que saltou a lebre. Grande como um galgo, um lebrão, lombo cinzento e
acastanhado, barriga a roçar o branco e duas orelhas apontadas à copa do
arvoredo. Em três saltos galgou a rampa do barranco e especou-se, queda, tensa,
nervosa, nem chegava a vinte metros do chaparro onde o pessoal descansava.
António
dos Olhos Tristes estava entretido a ajudar uma formiga azelhuda que se tinha
alambazado com uma espigona de centeio, cem vezes maior do que ela, às
pandaretas prá’qui, às pandaretas prá’li. António dos Olhos Tristes, segurando
uma folhinha seca, ora levantava daqui, ora empurrava dacolá, tentando ajudar a
arara a levar a tralha a bom termo.
O
Zaías gritou: – Olha uma lebre, parece um cavalo! O bicho agitou as orelhas e retesou
mais os músculos, pronto para a corrida. O pessoal ficou todo pregado onde
estava, olhos fincados no bicho.
Foi
então que António dos Olhos Tristes se levantou. Devagar, primeiro uma mão no
ar, depois a outra, até que se ergueu todo e começou a andar. Um passo. Parou.
Outro passo. Parou. A gente nem acreditava: um lebrão é um animal que assim que
vê um homem levantar um dedo maminho prega logo três saltos e desaparece a mais
de cem à hora. E aquele ali estava, quieto, fixo, a olhar para António dos Olhos
Tristes, que em vinte passadas quase ficou com as botas a baterem-lhe no pêlo.
O
Chico da Caniçada ia a levar um pedaço de queijo à boca, com a folha do
canivete, e quedou-se assim, com o braço no ar, o canivete a meio da viagem, de
boca aberta, como se fosse de pedra. Os outros na mesma: pareciam tão
encantados por uma jibóia que até o suor deixou de correr nas caras e ficou
parado, colado à barba.
António
dos Olhos Tristes baixou-se devagarinho, passou a mão pelo lombo da lebre, da
cabeça ao rabo, da cabeça ao rabo, duas vezes, três vezes, a seguir põe-se de
cócoras e começa a alisar-lhe as patas, de cima para baixo, ora as da frente
ora as de trás. E sempre a falar-lhe: – Pronto, pronto, não tenhas medo. Sou
eu, não tenhas medo. Foi caçador, foi caçador ou raposo que te assustou, minha
linda. Eles são maus, eles são maus. Não tenhas medo. Pequerrucha. Pequerrucha.
E
a lebre quieta. E a lebre tão parada que até parecia entender tudo o que ele
lhe dizia, cada vez mais calma, cada vez com as pernas mais quietas e o corpo
menos em arco…
Então
António dos Olhos Tristes dá-lhe uma palmada no rabo e manda: – Agora já podes
ir à tua vida descansada. Vá. Vai. Não tenhas medo.
A
lebre ensaia um salto, um salto curtinho, e fica a acompanhar com os olhos o regresso
de António dos Olhos Tristes para o pé da gente.
Daí
a nada arrancou numa corrida que até levantava pó entre a caruma.
(…)
Eduardo Olímpio