terça-feira, 29 de outubro de 2019

O Pão por Deus












Em algumas regiões de Portugal no dia 1 de Novembro, Dia de Todos-os-Santos, as crianças saíam à rua e juntavam-se em pequenos bandos para pedir o Pão-por-Deus de porta em porta. Noutras, era em casa dos avós e dos padrinhos que recebiam o chamado “santoro”, “santorinho”, “pão das almas” ou “os santos”.
Normalmente eram presentes que tinham a ver com o que a terra dava - romãs, passas, nozes, tremoços, amêndoas e castanhas ou pão, broas e bolos feitos de propósito para a ocasião.
Mandava também a tradição que nesse dia se repartisse pelos mais pobres pão acabado de cozer, em honra dos fiéis defuntos.
As crianças, ao pedirem o pão-por-deus recitavam versos, assim se dizia:
Bolinhos e bolinhós
Para mim e para vós,
Para dar aos finados
Que estão mortos e enterrados
À bela, bela cruz
Truz, Truz!
A senhora que está lá dentro
Sentada num banquinho
Faz favor de s'alevantar
Para vir dar um tostãozinho.

Se dão doces:
Esta casa cheira a broa,
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho,
Aqui mora um santinho.

Se não dão doces:
Esta casa cheira a alho
Aqui mora um espantalho.
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto

Nos nossos dias, a progressiva implantação do Halloween em Portugal constitui um exemplo de ameaça ou risco à continuidade do “Pão-por-Deus” como manifestação do Património Imaterial português.
Assim, vemos substituídos os versos da tradição oral da comunidade por expressões orais originárias do Inglês (“Doçura ou travessura!” / “Trick or treat!”) e o uso de máscaras e fatos muito semelhantes às usadas no Carnaval, totalmente ausentes do “Pão-por-Deus”, tendo sido eliminadas por completo as conotações religiosas muito presentes na antiga tradição do “Pão-por-Deus” .

MEG

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Choveu em Alcoutim












Palavras sábias de um alcoutinense ilustre que, após uma vida intensa e muito cheia por outras paragens, regressou para voltar a habitar a sua terra de infância (onde a família se radicou em 1936, tinha ele 3 anos de idade):

Finalmente, a meteorologia acertou: choveu em Alcoutim. O povo nem queria acreditar, já tomava os alertas de chuva como mera boataria. Vive na angústia da seca severa e vê a principal barragem que lhe dá de beber - Odeleite - descer abaixo dos 20% da sua capacidade.


Este ancestral medo da seca exprime-se nos termos que nós - povo do Sul - usamos na relação com a chuva.

Se é chuva miudinha e mansa, dizemos: «está a peneirar». Se é forte e súbita, chamamos «esgarrão». Se é de pedra, «garnacho». Se a chuva abranda, dizemos «está a escampar», e se parou, «escampou».

Apesar deste modo poético de falar da chuva, a chuva quer pouco connosco e parece que vai querer cada vez menos.

Então, não será altura do Algarve começar a pensar em processos de dessalgar da água do mar, como já se está a fazer em certas zonas do Sul da Espanha?

Alcoutim, 21.10.2019

Carlos Brito

domingo, 20 de outubro de 2019

10ª Visita a espaços de interesse para o património – “E não sei se o mundo nasceu”























Redescobrir Fernando Namora (1919-1989) foi o propósito da Associação Aldraba, que esteve na manhã deste domingo (20/10/2019) no Museu do Neo-Realismo para visitar a excelente exposição que assinala o centenário do seu nascimento.
Médico, escritor e artista plástico, Fernando Namora foi (é) um dos nomes grandes da nossa literatura agora lembrado mas tantas vezes esquecido e mesmo ignorado.
Precursor na abordagem a temas dos nossos dias, dos Encontros Internacionais de Genebra traz preocupações que verte para escrita no seu “Diálogo em Setembro” (1966), onde faz uma análise de Portugal e do comportamento português por comparação com o que lá lhe foi dado observar.
A poesia escrita entre 1959 e 1969 foi publicada no livro “Marketing”, um exercício de ironia sobre o mundo moderno e o consumismo, onde se lê:
“…
Sagres é uma boa cerveja
e eu acabei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
e até consigo adormecer com hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeinado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre Solaire.”

Para além de Fernando Namora, vale sempre a pena rever a exposição permanente que ilustra o que foi o movimento Neo-Realista português na Literatura, Teatro, Cinema, Música e Pintura.

MEG (texto e fotos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Nomes de localidades em azulejos (cont. 38)


















As placas toponímicas de azulejos colocadas pelo Automóvel Clube de Portugal, nos anos 1920's, à entrada das localidades portuguesas, constituem um riquíssimo património que interessa preservar e valorizar.

A nossa associação, conjuntamente com vários outros ativistas (para os quais se volta a enviar um grande abraço de amizade), tem vindo a procurar fotografar e registar na blogosfera as placas que resistem à erosão dos cerca de 100 anos que entretanto passaram.

Nos últimos 10 anos, fotografámos e publicámos dezenas dessas placas, tal como reproduzimos (sempre citando a fonte) placas publicadas por outros ativistas do património, de norte a sul de Portugal.

Hoje, o amigo da ALDRABA Jorge Torres, que já captou e nos fez chegar muitas placas pelo país, a última das quais há poucas semanas, encontrou agora uma na localidade de Vilarinho, que era uma freguesia autónoma com o mesmo nome, e que, na reorganização autárquica de 2013, foi incluída na dita União de Freguesias de Lousã e Vilarinho, do concelho da Lousã.

O concelho da Lousã faz parte do distrito de Coimbra.

Obrigado, Jorge, por esta continuada colaboração, que aumenta para 171 o número de placas toponímicas do ACP aqui publicadas.

JAF

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

"As mãos dos pretos"















A ALDRABA luta pela preservação e pela valorização das memórias do nosso povo.

Por essa mesma razão, estamos contra o apagamento e a deturpação das nossas memórias, mesmo quando elas são dolorosas...

Contra aqueles que querem ignorar ou branquear o passado de Portugal em África, na América do Sul e na Ásia, importa lembrar que o racismo e a exploração dos povos das colónias existiu mesmo! 

Para ajudar nesse exercício de avivar memórias, publicamos hoje um conto de Luís Bernardo Honwana, escritor moçambicano nascido em Lourenço Marques (atual Maputo), em 1942, e que, com os seus 8 irmãos, cresceu em Moamba, pequena cidade do interior onde o pai, negro "assimilado", trabalhava como intérprete para a administração portuguesa. 

Voltou mais tarde para Lourenço Marques, para estudar jornalismo, profissão em que veio a trabalhar. Aderiu à Frelimo, tendo estado preso pelas autoridades portuguesas entre 1964 e 1967. Após a independência em 1975, desempenhou vários cargos de relevo, tendo chegado a Secretário de Estado da Cultura. 

Ainda com 22 anos, Luís Honwana publicou o livro de contos "Nós matámos o cão tinhoso", em cuja apresentação nos explica que andava entusiasmado com Eugénio Lisboa, Rui Knopfli e José Craveirinha, e que vários amigos o estimularam a reunir e editar em livro o que ele vinha publicando em suplementos literários juvenis.

Reproduzimos um dos mais belos contos do livro, que, além do seu nível literário, é de grande oportunidade quando tanta gente ainda por aí a proclamar que nunca houve racismo em Portugal e até (pasme-se!) duvidando que tenha havido colonialismo...

AS MÃOS DOS PRETOS
Já não sei a que propósito é que isto vinha, mas o senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando o Senhor padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltou a falar nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles andavam com elas às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deve ficar senão limpa.
O Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as Coca-Colas das cantinas já tenham sido vendidas, disse que o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
- Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram em moldes usados de cozer o barro das criaturas, levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco da Virgínia e de mais não sei onde. Já se vê que Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que, ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão das mãos dos pretos serem mais claras do que o resto do corpo. No outro dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela disse foi mais sou menos isto:
- Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos, porque os que já se tinham habituados a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tivessem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fui para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.
Luís Bernardo Honwana, "Nós matámos o cão tinhoso", Lourenço Marques, 1964, pp. 107-111