O n.º 32, de outubro de 2022, da revista da nossa Associação, encontra-se na gráfica para edição, e espera-se que fique concluído muito em breve.
Aqui se divulga, em pré-publicação, o seu editorial:
TRADIÇÕES RE/INVENTADAS
No
meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o
passado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio.
Exercitem-no os que podem e sabem; porque não o fazer é um crime.
Alexandre
Herculano, in “O Bobo” (editado pela primeira vez em 1843).
Não há muito tempo, li
um artigo on-line em que se afirmava
que a missão dos criadores actuais “não é estragar a integridade da história,
mas remetê-la para uma modernidade criativa”. Significa isto que os conceitos
estéticos, as peças ou produtos dos novos criativos podem não primar pela
completa originalidade, procurando antes a raiz do que é português,
inspirando-se no que já existe, no que faz parte de um património colectivo –
as nossas tradições.
Com efeito, os símbolos
e tradições portuguesas que, há alguns anos, eram considerados ultrapassados
têm vindo a adquirir uma nova aura – uma espécie de estilo retro-chique que
passou a ser valorizado e apreciado por muitos. Recorde-se as lojas de produtos
classificados como “vintage” – peças que se tornaram importantes e
substancialmente encarecidas e que, não há muito tempo, eram perfeitamente
dispensáveis. Atente-se no “novo” design
do mobiliário de interiores que transporta os modelos das salas de estar dos
anos 60 e 70, do século XX, para a actualidade. Veja-se o caso da loja “Vida
Portuguesa” que alcançou grande sucesso. Os símbolos portugueses foram
recriados - evidenciam-se as marcas do século passado. Não obstante as vibrantes
embalagens parecerem acabadas de sair da gráfica - os produtos, as cores, o design são um apelo constante às nossas
emoções e aos nossos lugares de memória.
Os processos de
redescoberta e de reinvenção das tradições nada terão de negativo se não constituírem
uma apropriação abusiva e pouco preocupada com a identificação da sua origem,
da sua genuinidade e da sua matriz cultural.
Há tradições que se mantêm,
que persistem no tempo sem alterações, outras que se renovam mantendo a matriz.
As ligadas ao Carnaval, como os Caretos de Podence, que não revelam alterações
de assinalar, a Procissão da Senhora da Saúde, que se realiza desde o século
XVI, e que comporta pequenas e pouco relevantes alterações como a integração da
Guarda Nacional Republicana, ou a incorporação de outras figuras como Santa
Bárbara e Santo António, ou ainda os arraiais dos Santos Populares de Lisboa
que têm vindo, ao longo do tempo, a integrar elementos diversos, como os tipos
de bebidas consumidas - o vinho foi substituído por cerveja, caipirinhas ou
mojitos, bem como o estilo de música - as tradicionais marchas foram
substituídas pela designada música “pimba”.
Outras há que nem que
nem sequer são tradições – são deturpações, jogadas de marketing, meras
invenções com intuitos economicistas que são apresentadas e impingidas ao
turismo como tradições verdadeiras e genuínas. O aberrante caso da loja da Rua
Augusta, decorada com brasões de poliuretano a imitar bronze antigo e cartazes
de mau gosto que anunciam a um preço indecente, como especialidade da nossa
tradição gastronómica, o pastel de bacalhau com queijo da serra, é um exemplo.
Maria de Lourdes Modesto, nome relevante da história da gastronomia portuguesa,
classificou este produto como uma “obscenidade”.
Outro caso de abusivo
aproveitamento da tradição conserveira é “O Mundo Fantástico da Sardinha
Portuguesa” em pleno Rossio, cuja loja se assemelha a uma feira integrando um
carrocel de imitação francesa e onde as varinas de Lisboa foram substituídas
por majoretes.
As tradições fazem parte
do nosso património colectivo – são forma de estar e sentir – são a nossa marca
distintiva enquanto portugueses. Pena é que muitas vezes sejam, de forma
arbitrária, transformadas, desrespeitadas e adulteradas.
Sejam genuínas ou
inventadas, de acordo com os conceitos de Hobsbawm, Portugal é um país de
grande riqueza no que respeita a tradições. Cabe a todos nós, enquanto povo,
reconhecê-las, respeitá-las e defendê-las. No fundo, se estivermos atentos,
todos podemos e sabemos fazer o exercício de recordar e valorizar o passado,
como nos aconselha o grande historiador.
Webgrafia
https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/82675/2/117565.pdf
https://www.comumonline.com/2015/04/tradicoes-reinventadas/
https://visitar.lisboa.pt/tradicao/procissoes/nossa-senhora-da-saude
https://www.pasteldebacalhau.pt/
https://www.casalmisterio.com/ja-provamos-o-novo-pastel-de-bacalhau-280407
https://observador.pt/2015/06/15/obscenidade-maria-lourdes-modesto-nao-quer-pastel-bacalhau-metido-queijo-da-serra/
Ana Isabel Veiga