Tudo começou com abraços. As palmadas nas costas quase que podiam ser ouvidas nos trilhos do contrabando que dominavam os percursos rurais daquelas bandas.
Afinal de contas os reencontros, ao fim de tantos anos, voltavam a ser para caminhar. Caminhar para homenagear. Caminhar para sentir a força de um coletivo que não baixou os braços.
Tiago
Teotónio Pereira, o neto residente nas terras de S. Mamede, anunciou o programa,
que José Alberto Franco, Presidente da Direção da Associação Aldraba,
pormenorizou anunciando uma das atividades do evento, que indiciava lógicas
formativas ou de aprofundamento de cultural geral, uma espécie de módulo
prático sobre “o contrabando, modo de vida das populações locais no passado”.
“Uma
vez com um grupo de amigos ia a uma festa, do outro lado da fronteira e fomos
interceptados por dois guardas fiscais. Perguntas e mais perguntas até que no
final deixaram-nos ir. Um último conselho – vejam lá não se embebedem –
recomendaram com forte sentido de autoridade e partiram deixando-nos o caminho
aberto para o baile que prometia. Avançámos, agora sem cautelas especiais, e
chegámos ao recinto. Para surpresa nossa, os dois guardas já lá estavam
encostados ao balcão e de copo na mão. Olharam para nós e sorriram. Afinal
havia atalhos para estes lados da fronteira que só eles é que conheciam.”
relatou-nos um dos originários de Fontañera, localidade que serviu de ponto
logístico onde o grupo de caminheiros acabou por fazer uma paragem, a meio caminho
do percurso que em 1970 foi realizado pelos desertores Fernando Venâncio e Joel
Pinto, então apoiados diretamente por José Alberto Franco, que os conduziu a
Madrid.
O
grupo, muito heterogéneo na sua composição etária e nas origens territoriais
dos participantes, atacou as diversas provas de resistência física que os
desafios permanentes das subidas e descidas foram colocando, e acabou por cumprir
de forma segura e descontraída a programação desenhada em função da rota de
“salto” que 52 anos antes tinha sido vivida por alguns dos presentes na
caminhada.
Em
boa verdade, nesta dinâmica, aparentemente menos disciplinada que as caminhadas, que os roteiros turísticos oferecem nestas terras de riquíssimas tradições
transfronteiriças e de cenários naturais reconfortantes, a maior dificuldade
consistiu em executar de forma razoável um exercício à primeira vista fácil de
concretizar o “conter a língua” para respirar. Não havia grupo, neste enorme
caudal que se ia movendo lentamente, fragmentado por pequenos núcleos, que não
estivesse à conversa mobilizando recordações e memórias passadas, atualizando
situações profissionais e pessoas e opinando sobre as situações dramáticas dos
nossos dias que a guerra na Europa está a colocar na ordem do dia.
Os momentos de entusiasmo coletivo foram vários e as histórias para contar, intermináveis. Se tivéssemos o condão da Blimunda de Saramago, a tal das Sete Luas, que no Memorial do Convento fazia recolha de vontades para criar energia para a passarola voar, teríamos neste encontro de “mulheres e homens de boa vontade” um relançar de esperança num ativismo de generosidade e de humanismo militante.
Isto porque as intervenções de José Alberto Franco, Joel Pinto e
Fernando Venâncio sobre a deserção e a recusa da Guerra Colonial relembraram-nos
a importância dos Bartolomeus Lourenços de Gusmão no apelo rebelde para
voarmos, voarmos como ato de criação e de coragem.
E
sabemos, que no seu discreto quotidiano, Nuno Teotónio Pereira construía
…passarolas.
Carlos Ribeiro, "Sem fronteiras" - Media de ação coletiva, 28/3/2022
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