terça-feira, 29 de março de 2022

Encruzilhadas de uma deserção ou a arquitetura de uma outra resistência

































Experiência inesquecível, vivida no passado dia 27 de março de 2022, entre as 10h30 e as 17h, no concelho de Marvão, de Galegos à aldeia espanhola de Fontañera, e regresso a Galegos. Evocou-se a fuga de dois desertores da guerra colonial, que teve lugar naquele mesmo percurso, 52 anos antes, com o apoio ativo do arquiteto Nuno Teotónio Pereira, cujo centenário se comemora no corrente ano. Organização dos familiares do Nuno, o apoio da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia locais, e a adesão da Associação dos Exilados Políticos Portugueses 61/74 (ali representada pelo diretor Joaquim Nunes), da ALDRABA-Associação do Espaço e Património Popular (representada por 3 membros da sua direção) e do movimento cívico Não Apaguem a Memória. Participaram 74 pessoas, das quais 68 adultos e 6 crianças. Reproduzimos, com a devida vénia, a reportagem ontem divulgada na plataforma "Sem fronteiras", elaborada pelo amigo Carlos Ribeiro, e uma parte das fotografias aí publicadas:


Foram chegando aos poucos, quase a conta gotas. A igreja de Galegos, mesmo ali ao lado, parecia ir ter cerimónia como nos tempos antigos. A meia centena de participantes na Evocação da passagem da fronteira: uma experiência de resistência ao fascismo e à guerra colonial (1970), organizada no quadro do centenário do nascimento de Nuno Teotónio Pereira, trouxe ao largo da aldeia uma animação inesperada. 

A caminhada idealizada por familiares, amigos, companheiros de lutas do passado e do presente do arquiteto dos silêncios luminosos estava prestes a arrancar.

Tudo começou com abraços. As palmadas nas costas quase que podiam ser ouvidas nos trilhos do contrabando que dominavam os percursos rurais daquelas bandas. 

Afinal de contas os reencontros, ao fim de tantos anos, voltavam a ser para caminhar. Caminhar para homenagear. Caminhar para sentir a força de um coletivo que não baixou os braços.

Tiago Teotónio Pereira, o neto residente nas terras de S. Mamede, anunciou o programa, que José Alberto Franco, Presidente da Direção da Associação Aldraba, pormenorizou anunciando uma das atividades do evento, que indiciava lógicas formativas ou de aprofundamento de cultural geral, uma espécie de módulo prático sobre “o contrabando, modo de vida das populações locais no passado”.

“Uma vez com um grupo de amigos ia a uma festa, do outro lado da fronteira e fomos interceptados por dois guardas fiscais. Perguntas e mais perguntas até que no final deixaram-nos ir. Um último conselho – vejam lá não se embebedem – recomendaram com forte sentido de autoridade e partiram deixando-nos o caminho aberto para o baile que prometia. Avançámos, agora sem cautelas especiais, e chegámos ao recinto. Para surpresa nossa, os dois guardas já lá estavam encostados ao balcão e de copo na mão. Olharam para nós e sorriram. Afinal havia atalhos para estes lados da fronteira que só eles é que conheciam.” relatou-nos um dos originários de Fontañera, localidade que serviu de ponto logístico onde o grupo de caminheiros acabou por fazer uma paragem, a meio caminho do percurso que em 1970 foi realizado pelos desertores Fernando Venâncio e Joel Pinto, então apoiados diretamente por José Alberto Franco, que os conduziu a Madrid.

O grupo, muito heterogéneo na sua composição etária e nas origens territoriais dos participantes, atacou as diversas provas de resistência física que os desafios permanentes das subidas e descidas foram colocando, e acabou por cumprir de forma segura e descontraída a programação desenhada em função da rota de “salto” que 52 anos antes tinha sido vivida por alguns dos presentes na caminhada.

Em boa verdade, nesta dinâmica, aparentemente menos disciplinada que as caminhadas, que os roteiros turísticos oferecem nestas terras de riquíssimas tradições transfronteiriças e de cenários naturais reconfortantes, a maior dificuldade consistiu em executar de forma razoável um exercício à primeira vista fácil de concretizar o “conter a língua” para respirar. Não havia grupo, neste enorme caudal que se ia movendo lentamente, fragmentado por pequenos núcleos, que não estivesse à conversa mobilizando recordações e memórias passadas, atualizando situações profissionais e pessoas e opinando sobre as situações dramáticas dos nossos dias que a guerra na Europa está a colocar na ordem do dia.

Os momentos de entusiasmo coletivo foram vários e as histórias para contar, intermináveis. Se tivéssemos o condão da Blimunda de Saramago, a tal das Sete Luas, que no Memorial do Convento fazia recolha de vontades para criar energia para a passarola voar, teríamos neste encontro de “mulheres e homens de boa vontade” um relançar de esperança num ativismo de generosidade e de humanismo militante. 

Isto porque as intervenções de José Alberto Franco, Joel Pinto e Fernando Venâncio sobre a deserção e a recusa da Guerra Colonial relembraram-nos a importância dos Bartolomeus Lourenços de Gusmão no apelo rebelde para voarmos, voarmos como ato de criação e de coragem.

E sabemos, que no seu discreto quotidiano, Nuno Teotónio Pereira construía …passarolas.

Carlos Ribeiro, "Sem fronteiras" - Media de ação coletiva, 28/3/2022

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