A rua da minha avó era diferente de
todas as ruas da aldeia.
Todas as ruas tinham pedras e terra
batida e não sonhavam sequer com o luto do alcatrão que o futuro haveria de
trazer. Todas tinham casas baixinhas, com paredes de taipa rugosa, caiadas de
cal em todas as primaveras, como se quisessem fazer inveja às flores brancas
das estevas. Todas tinham chaminés a deitar fumo todo o ano porque a comida,
saída das mãos que amanhavam a terra, cozinhava-se na lareira, dentro das
panelas feitas do barro, também ele arrancado à terra. Todas cheiravam ao pão
acabado de cozer e ao calor das azinheiras em brasa. Todas tinham casas com as
portas e os postigos abertos para quem quisesse entrar e dizer bom dia. Todas
tinham o céu estrelado ou a luz coada do luar para acender a escuridão da
noite. Todas tinham o mesmo canto dos pardais, o mesmo ladrar dos cães, o mesmo
cantar dos galos. Todas tinham as vozes dos homens que vinham da lavoura quando
o sol se punha nos montes. Todas tinham os risos felizes das crianças a brincar
com a terra…
A rua da minha avó só era diferente
porque era a rua da minha avó.
A rua começava estreita, mas em frente
de casa havia um pequeno largo com uma cerca plantada de oliveiras, rodeada de
um muro de pedra onde viviam lagartixas amantes do sol e de correrias velozes.
Mais abaixo, a rua estreitava novamente
numa casa que parecia querer dobrar-se sobre si para se abraçar. Nessa curva
branca da casa, nesse abraço, nasceu um poial onde se encostavam as mulheres e
para onde eu saltava quando queria parecer mais crescida do que elas. Era a
casa de uma mulher baixinha e velha, que era casada com o coveiro da aldeia.
Tinha o nome de Maria Gertrudes mas toda a gente lhe chamava “Ti Mari
Estrudes”.
A “Ti Mari Estrudes” nunca tinha saído
da aldeia. Por isso ficava sempre admirada com as novidades que eu levava quando
ia de férias para a casa da avó. Um dia, estava ela a falar com a minha avó e
mais algumas vizinhas da rua, quando eu apareci, numa correria, vinda de dentro
de casa.
-Avó, avó, vou lanchar para casa da
madrinha Natércia e levo o lanche num saco de plástico.
A “Ti Mari Estrudes” olhou para mim,
depois para aquele objecto estranho que eu tinha na mão e que envolvia duas
fatias de pão coladas com um belo pedaço de marmelada, e comentou:
-Tenho ouvido tanto falar em “plasco”,
em “plasco”… Isso é alguma coisa que “mercam” para comer?
Eu achava graça a estes comentários e às
histórias que a minha mãe contava sobre ela. A “Ti Mari Estrudes” não sabia ler
nem escrever, como muitas das mulheres da aldeia, e era a minha mãe quem lhe
escrevia as cartas para uma filha que vivia longe, a trabalhar em casa de um
juiz, homem muito importante, como se orgulhava de contar. Sentava-se junto da
minha mãe, olhos cravados no papel e ditava o princípio da carta: “Prante aí
que espero que estejam todos bem de saúde, que nós cá vamos bem, graças a Deus…
Prante aí que o meu Zé tem andado “bem bom”, que a Maria também está “bem boa”
e que eu sou a que está pior das “cadeiras”. Depois de mais umas informações
sobre o estado do tempo, das colheitas da horta ou da saúde dos animais, a
minha mãe compunha a carta que depois lia a uma “Ti Mari Estrudes” maravilhada
com o segredo posto a descoberto daqueles desenhos pequenos e certinhos, que a
mão da minha mãe fizera, com a sua letra bonita, na folha branca de papel.
Mas o que realmente eu admirava na “Ti
Mari Estrudes” era o facto de ela partilhar a casa com o marido e com um burro.
Como eu gostava de ficar na rua, em frente à sua porta, à espera que chegasse o
sol-posto! Findo o dia de trabalho, entravam todos em casa. Primeiro o burro,
depois os donos. Aquilo era uma coisa que me deixava boquiaberta. A casa tinha
uma sala à entrada com dois degraus ao fundo, degraus que o burro subia sem
qualquer hesitação, para depois entrar no seu quarto, uma divisão que ficava ao
lado da cozinha. Aí dormia até ao raiar do dia seguinte, partilhando o mesmo
tecto, respirando o mesmo ar, numa cama feita de palha, quentinho e
aconchegado, como se de um filho se tratasse.
E eu tinha a certeza absoluta que era
por isso que o burro da “Ti Mari Estrudes” tinha o olhar mais meigo e doce de
todos os burros da aldeia.
Natércia Duarte, in Facebook, 12/11/2021
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