A nossa amiga Ana Alexandra Henriques, que publicou no nº 26 da revista "Aldraba" o seu testemunho intitulado "Uma experiência como carteira na cidade de Lisboa", escreveu agora esta saborosa crónica sobre o bairro da Mouraria, que aqui publicamos, com a devida vénia:
Depois
das ruas do Bairro Alto e do Príncipe Real, o novo trabalho trouxe-me até à
Mouraria. E se, nos primeiros casos, circulava essencialmente em vias
residenciais, no segundo, nem tanto.
Cores, cheiros, sabores, desde que saio
do metro e atravesso parte do Centro Comercial da Mouraria e entro neste mundo
a que nenhum dos sentidos fica indiferente.
Não sei ao certo as nacionalidades dos
vendedores, creio que há de tudo um pouco, por entre colchas coloridas, roupa,
lojas de telemóveis (porta sim, porta sim, e com anúncios à Lycamobile em todos
eles), souvenirs para os muitos turistas que por lá circulam, um sapateiro,
óculos de sol e relógios de marca não identificada, chapéus e capas para a chuva,
porta-chaves peludos e lingerie assustadora… Hehe!
E os cheiros? Especiarias, frutas,
legumes, alguns que nem sei o que são… Tudo isto até chegarmos às escadas que
dão acesso ao Martim Moniz.
Cá em cima, não é assim tão distinto,
passando a haver ainda mais variedade. Aos estabelecimentos anteriores
juntam-se os restaurantes chineses, indianos, vietnamitas, paquistaneses, do
Bangladesh… com ofertas que o meu paladar rejeita por não gostar de comida
muito condimentada, caril e afins.
Há também um sem número de papelarias,
esse mundo que eu adoro… cadernos, canetas, lápis, dossiers, folhas coloridas…
Aquele cheirinho a papel novo… Como eu era uma criança feliz no “Regresso às
aulas”, naquelas idas às compras com a lista de material para a escola…
Por entre uma loja de ferragens, com
parafusos do XXS ao XXL e tudo o que se possa imaginar nesse mundo que não
domino, há a Doce Mila, famosa pelos pastéis da Mouraria, lado a lado com um
centro de explicações, que tem quase sempre à porta, desejosos de aprender
Português, chinesinhos/as pequeninos/as, fardados da escola, elas com totós e
saias plissadas, eles de calções e camisas brancas, que, com sorte, nos brindam
com um "olá!".
Não posso deixar de realçar um
relojoeiro, uma loja parada no tempo, a fazer lembrar as de há umas décadas.
Pertence a um velhote português, abatido e com olhos tristes, a quem costumo
dar um sorriso sempre que nos cruzamos, quando desço a rua, no final do dia de
trabalho, e vou em direcção ao metro. Um dia destes talvez pare lá e troque
dois dedos de conversa com ele. Aposto que deve ter “estórias” para contar…
Há outros ramos que proliferam por entre
as ruas da Mouraria: marroquinaria, bijuteria... Indiana, chinesa… Roupas de
cores fortes e colares vistosos, em tons de dourado, enchem as montras, fazendo
lembrar, em versão imitação, os de ouro de Viana do Castelo. Malas, bolsinhas,
chapéus, porta-chaves… tudo em cortiça, rivalizam com cachecóis coloridos dos
clubes de futebol cá do burgo e até do Flamengo de Jorge Jesus.
As lojas chinesas, fazendo concorrência
séria ao Ali Express (que também vende a partir do mesmo país), estão cheias de
fios, brincos e afins, além de contas de todas as cores e feitios para os/as
habilidosos/as que conseguem fazer “coisas giras” com essas matérias-primas.
E as mercearias? Ao lado de uma loja de
macrobiótica (filha única, diga-se), proliferam como cogumelos, em frente e ao
lado umas das outras. Concorrência pura e dura! Algumas fazem-me lembrar o
“lugar da D. Aurora”, onde ia às compras com a minha avó, quando era miúda.
Ficava mesmo por baixo do prédio em que moravam os meus avós, no Areeiro, e
tinha de tudo um pouco: fruta, legumes, iogurtes e uns requeijões óptimos,
numas caixinhas com buraquinhos, que depois de lavadas serviam para eu brincar.
Mas voltando à Mouraria e também um
pouco à zona da Almirante Reis. Tal como o relojoeiro do velhote, há mesmo
lojas que parecem paradas no tempo. As que vendem lençóis e toalhas, sobretudo.
E as de bugigangas, panelas, tachos e afins. Questiono-me como sobrevivem e
fazem face à concorrência de um mundo que não pára nem se compadece com “os que
ficam para trás”.
Também não faltam as “tascas”
portuguesas. Pode comer-se bem e barato (e sem saber a caril… hehe), se
tivermos vontade de “espiolhar” ruas mais dentro do bairro em busca de um
petisco bem “tuga”. Para isso, talvez seja preciso subir e descer um pouco,
atravessar ruas apertadas e andar a pé, mas, no fim, vai valer a pena.
Porém, nem tudo são rosas… A droga, a
pobreza e a prostituição são realidades neste bairro lisboeta. Não faltam
sem-abrigo a dormir pelo chão, embrulhados na pouca roupa que têm, tapados com
cobertores e ou cartões, tentando fazer frente ao frio que se faz sentir.
Paralelamente, por entre esta miscelânea
sensorial e de nacionalidades, os bem lisboetas eléctricos “rasgam” a pintura,
circulando a abarrotar de turistas, nas ruas apertadas da Mouraria. Não me
livro de ter de lhes dar indicações na paragem, sabendo de cor e salteado que
procuram o 28 para subirem ao Castelo e passearem pela nossa linda Lisboa,
naquela que é uma das carreiras de eléctrico mais carismáticas da cidade. Mas,
na realidade, não me importo… Até gosto, na minha habitual interactividade com
o que me rodeia.
Conhecem a Mouraria? Passem por cá e
digam coisas!
“Ai, Mouraria
Dos rouxinóis
nos beirais
Dos vestidos
cor-de-rosa
Dos pregões
tradicionais…”
Ana Alexandra
Henriques, 24/1/2020
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