sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Mouraria, hoje























A nossa amiga Ana Alexandra Henriques, que publicou no nº 26 da revista "Aldraba" o seu testemunho intitulado "Uma experiência como carteira na cidade de Lisboa", escreveu agora esta saborosa crónica sobre o bairro da Mouraria, que aqui publicamos, com a devida vénia:

Depois das ruas do Bairro Alto e do Príncipe Real, o novo trabalho trouxe-me até à Mouraria. E se, nos primeiros casos, circulava essencialmente em vias residenciais, no segundo, nem tanto.

Cores, cheiros, sabores, desde que saio do metro e atravesso parte do Centro Comercial da Mouraria e entro neste mundo a que nenhum dos sentidos fica indiferente.
Não sei ao certo as nacionalidades dos vendedores, creio que há de tudo um pouco, por entre colchas coloridas, roupa, lojas de telemóveis (porta sim, porta sim, e com anúncios à Lycamobile em todos eles), souvenirs para os muitos turistas que por lá circulam, um sapateiro, óculos de sol e relógios de marca não identificada, chapéus e capas para a chuva, porta-chaves peludos e lingerie assustadora… Hehe!
E os cheiros? Especiarias, frutas, legumes, alguns que nem sei o que são… Tudo isto até chegarmos às escadas que dão acesso ao Martim Moniz.
Cá em cima, não é assim tão distinto, passando a haver ainda mais variedade. Aos estabelecimentos anteriores juntam-se os restaurantes chineses, indianos, vietnamitas, paquistaneses, do Bangladesh… com ofertas que o meu paladar rejeita por não gostar de comida muito condimentada, caril e afins.
Há também um sem número de papelarias, esse mundo que eu adoro… cadernos, canetas, lápis, dossiers, folhas coloridas… Aquele cheirinho a papel novo… Como eu era uma criança feliz no “Regresso às aulas”, naquelas idas às compras com a lista de material para a escola…
Por entre uma loja de ferragens, com parafusos do XXS ao XXL e tudo o que se possa imaginar nesse mundo que não domino, há a Doce Mila, famosa pelos pastéis da Mouraria, lado a lado com um centro de explicações, que tem quase sempre à porta, desejosos de aprender Português, chinesinhos/as pequeninos/as, fardados da escola, elas com totós e saias plissadas, eles de calções e camisas brancas, que, com sorte, nos brindam com um "olá!".
Não posso deixar de realçar um relojoeiro, uma loja parada no tempo, a fazer lembrar as de há umas décadas. Pertence a um velhote português, abatido e com olhos tristes, a quem costumo dar um sorriso sempre que nos cruzamos, quando desço a rua, no final do dia de trabalho, e vou em direcção ao metro. Um dia destes talvez pare lá e troque dois dedos de conversa com ele. Aposto que deve ter “estórias” para contar…
Há outros ramos que proliferam por entre as ruas da Mouraria: marroquinaria, bijuteria... Indiana, chinesa… Roupas de cores fortes e colares vistosos, em tons de dourado, enchem as montras, fazendo lembrar, em versão imitação, os de ouro de Viana do Castelo. Malas, bolsinhas, chapéus, porta-chaves… tudo em cortiça, rivalizam com cachecóis coloridos dos clubes de futebol cá do burgo e até do Flamengo de Jorge Jesus.
As lojas chinesas, fazendo concorrência séria ao Ali Express (que também vende a partir do mesmo país), estão cheias de fios, brincos e afins, além de contas de todas as cores e feitios para os/as habilidosos/as que conseguem fazer “coisas giras” com essas matérias-primas.
E as mercearias? Ao lado de uma loja de macrobiótica (filha única, diga-se), proliferam como cogumelos, em frente e ao lado umas das outras. Concorrência pura e dura! Algumas fazem-me lembrar o “lugar da D. Aurora”, onde ia às compras com a minha avó, quando era miúda. Ficava mesmo por baixo do prédio em que moravam os meus avós, no Areeiro, e tinha de tudo um pouco: fruta, legumes, iogurtes e uns requeijões óptimos, numas caixinhas com buraquinhos, que depois de lavadas serviam para eu brincar.
Mas voltando à Mouraria e também um pouco à zona da Almirante Reis. Tal como o relojoeiro do velhote, há mesmo lojas que parecem paradas no tempo. As que vendem lençóis e toalhas, sobretudo. E as de bugigangas, panelas, tachos e afins. Questiono-me como sobrevivem e fazem face à concorrência de um mundo que não pára nem se compadece com “os que ficam para trás”.
Também não faltam as “tascas” portuguesas. Pode comer-se bem e barato (e sem saber a caril… hehe), se tivermos vontade de “espiolhar” ruas mais dentro do bairro em busca de um petisco bem “tuga”. Para isso, talvez seja preciso subir e descer um pouco, atravessar ruas apertadas e andar a pé, mas, no fim, vai valer a pena.
Porém, nem tudo são rosas… A droga, a pobreza e a prostituição são realidades neste bairro lisboeta. Não faltam sem-abrigo a dormir pelo chão, embrulhados na pouca roupa que têm, tapados com cobertores e ou cartões, tentando fazer frente ao frio que se faz sentir.
Paralelamente, por entre esta miscelânea sensorial e de nacionalidades, os bem lisboetas eléctricos “rasgam” a pintura, circulando a abarrotar de turistas, nas ruas apertadas da Mouraria. Não me livro de ter de lhes dar indicações na paragem, sabendo de cor e salteado que procuram o 28 para subirem ao Castelo e passearem pela nossa linda Lisboa, naquela que é uma das carreiras de eléctrico mais carismáticas da cidade. Mas, na realidade, não me importo… Até gosto, na minha habitual interactividade com o que me rodeia.
Conhecem a Mouraria? Passem por cá e digam coisas! 
“Ai, Mouraria
Dos rouxinóis nos beirais
Dos vestidos cor-de-rosa
Dos pregões tradicionais…”

Ana Alexandra Henriques, 24/1/2020

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