quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

As roncas de Elvas















As roncas chegaram a Lisboa para mostrar que a tradição ainda vive na casa de cada elvense. E que há gente com vontade de cantar o Natal, acompanhada pelo instrumento secular.

Eles alinham-se de capote vestido, boné na cabeça e ronca nos braços. Todos  juntos lá entoam os cânticos ao Menino para celebrar o Natal, como há décadas, talvez séculos, se fazia em Elvas e em toda aquela região raiana.
Assim eram algumas das muitas quadras que os homens de Elvas cantavam porta a porta na noite de Natal. A resposta, nas duas últimas estrofes, dava-a o dono da casa, abrindo-lhes as portas como um convite à celebração, oferecendo-lhes o que houvesse na mesa.
“Na noite da consoada cada um jantava na sua casa e depois juntavam-se dez ou 12 amigos e, até à hora da Missa do Galo, íamos a casa de todos. Numa casa era vinho tinto, noutra era vinho branco, noutra era anis, noutra vinho do Porto”, recorda José. Não arriscamos o desfecho da jornada, mas o certo é que, contam estes alentejanos, a prática foi caindo em desuso. 
A tradição estava assim quase perdida, ainda que digam que, na noite de Natal, lá se tirava a ronca dos arrumos e se cantavam umas quadras, mas apenas na casa de cada um. 
Um dia, um grupo de elvenses pensou em resgatar a ronca do esquecimento e levá-la a um qualquer palco, fosse ele uma rua, uma igreja, uma tasca ou um programa de televisão. No passado domingo, ainda no outro ano, o palco foi a Baixa de Lisboa. E ali se cantou o Natal de Elvas, os poemas do seu cancioneiro, acompanhados à ronca, este instrumento secular que eles lutam por preservar. 
Há cerca de três anos, juntou-se então esse grupo para fazer renascer as roncas. Para quem se está a perguntar o que é, afinal, este instrumento musical tão singular, podemos dizer que é uma vasilha de barro, semelhante a um alcatruz, mas sem fundo, à qual se ata no topo uma pele, tendo presa ao centro uma cana muito fina. Depois, com a mão molhada — alguns até usam uma esponja para que a cana esteja sempre escorregadia —, pressionam-na e o som sai grave como um ronco arrastado. A ronca, ou um objecto muito semelhante a ela terá sido trazida para a Península Ibérica no século VIII, com a chegada de tribos berberes do Norte de África, acreditam os seus entusiastas.
O oleiro
Como as pessoas tinham poucas posses, a ronca foi um instrumento quase improvisado para que emitisse um som e acompanhasse os cantares de Natal alentejanos. “A ronca estava na casa de cada elvense”, conta Roberto Dores, 50 anos, jornalista elvense regressado à terra há dois anos, que logo integrou o grupo, seguindo os passos do pai, que fora também ele um grande entusiasta dos cânticos do Natal de Elvas. “Isto é o recuperar de uma tradição que se estava a perder. Há uns 15, 20 anos cantava-se o Natal, mais no dia 24, já só na casa de cada um, eventualmente nalguma taberna”, recorda.
Este instrumento é também comum em toda a zona da raia — Alentejo, Extremadura. Na Andaluzia há mesmo um grupo de andaluzes que tem grandes roncas, às quais chamam “zambomba”.
O renascer da ronca deve-se também ao engenho e arte do oleiro Luís Pedras, que, diz o jornalista, “manteve a tradição viva”. Tem actualmente uma exposição na Casa da Cultura de Elvas com dezenas de roncas, que podem ser vistas até ao próximo dia 6 de Janeiro.
Depois da ronca, tudo se deve aos elementos deste grupo, que teimaram em não calar as suas vozes. Hoje o grupo, que pertence à associação Arkus, tem 19 membros. Têm perdido elementos, mas também têm entrado jovens e pessoas com experiência musical para garantir que as memórias das consoadas dos avós não se perdem na espuma dos dias.
Até há uns anos, tocar a ronca era exclusivo dos homens. “Antes os homens não deixavam entrar as mulheres nos grupos. Quando o grupo começou e entraram as primeiras três mulheres, houve pessoas que torceram o nariz à ideia de ‘ter mulheres num grupo de homens’.” Mas eles refutaram essa ideia. “Mulheres? Todas”, atira José Martins, de 68 anos.
Apesar de estar associado ao culto católico, ali os seus membros garantem que não fazem distinção entre religiões. Nem géneros. Todos os que quiserem cantar o Natal serão bem-vindos. Afinal, eles dizem que tocam e cantam até ficar sem voz porque devem isso à sua cidade. “Nós fazemos isto pelo gosto e pela nossa cidade.”
Os ensaios começam em Outubro e, uma vez por semana, reúnem-se para ter tudo afinado para as actuações que começam depois a partir de 8 de Dezembro. Este ano já contam 40 actuações. A Câmara de Elvas ajuda-os com a logística de arranjar capotes, bonés e roncas para todos, assim como o transporte. 
Este ano, estiveram também em escolas espanholas cantar. Como estão numa zona raiana, acabam por fazer parte do seu repertório alguns villancicos (canções de Natal), típicos do país vizinho. 
Carta de amor
Nas ruas de Lisboa, que por estes dias se enchem de espanhóis de visita à capital, é ver Carlos Mendes, o decano dos cantadores, a dar-lhes música ao som de Peces en el rio. Os cantares e a ronca hão-de continuar, pelo menos, até ao dia de Reis. 
José Martins arranca a explicação entusiasmado com a “carta de amor” escrita por Manuel de Portugal (n. 1525), filho do primeiro conde do Vimioso e de dona Joana de Vilhena, “a uma jovem linda que estava no séquito da rainha Dona Catarina, que era dona Francisca de Aragão”. “Os trovadores da época todos lhes escreveram cartas: Camões, Pêro de Andrade Caminha, Garçisanchez e este Manuel de Portugal. Ela era camareira-mor da rainha Dona Catarina”, conta José, que é também guia turístico em Elvas.
A carta, datada de meados do século XVI, havia de fazer parte do Cancioneiro de Elvas, manuscrito português dessa altura com música e poemas do Renascimento. E um dos quatro, juntamente com o Cancioneiro de Lisboa, o Cancioneiro de Belém e o Cancioneiro de Paris, do século XVI, que são hoje conhecidos. Houve ainda outros autores espanhóis que escreveram villancicos, cuja obra foi depois traduzida pelo “grande erudito, António Tomás Pires”, conta José, que não esconde o orgulho de ver o instrumento que tem debaixo do braço associado à memória do país. “Até as roncas de Elvas têm que ver com a história de Portugal.”
Cristina Faria Martins , in “Público”, 2/1/2020

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