As roncas chegaram a Lisboa para mostrar que a tradição ainda vive na casa de cada elvense. E que há gente com vontade de cantar o Natal, acompanhada pelo instrumento secular.
Eles
alinham-se de capote vestido, boné na cabeça e ronca nos braços. Todos
juntos lá entoam os cânticos ao Menino para celebrar o Natal, como há décadas,
talvez séculos, se fazia em Elvas e em toda aquela região raiana.
Assim eram
algumas das muitas quadras que os homens de Elvas cantavam porta a porta na
noite de Natal. A resposta, nas duas últimas estrofes, dava-a o dono da casa,
abrindo-lhes as portas como um convite à celebração, oferecendo-lhes o que
houvesse na mesa.
“Na noite da
consoada cada um jantava na sua casa e depois juntavam-se dez ou 12 amigos e,
até à hora da Missa do Galo, íamos a casa de todos. Numa casa era vinho tinto,
noutra era vinho branco, noutra era anis, noutra vinho do Porto”, recorda José.
Não arriscamos o desfecho da jornada, mas o certo é que, contam estes
alentejanos, a prática foi caindo em desuso.
A tradição
estava assim quase perdida, ainda que digam que, na noite de Natal, lá se
tirava a ronca dos arrumos e se cantavam umas quadras, mas apenas na casa de
cada um.
Um dia, um
grupo de elvenses pensou em resgatar a ronca do esquecimento e levá-la a um
qualquer palco, fosse ele uma rua, uma igreja, uma tasca ou um programa de
televisão. No passado domingo, ainda no outro ano, o palco foi a Baixa de
Lisboa. E ali se cantou o Natal de Elvas, os poemas do seu cancioneiro,
acompanhados à ronca, este instrumento secular que eles lutam por preservar.
Há cerca de
três anos, juntou-se então esse grupo para fazer renascer as roncas. Para quem
se está a perguntar o que é, afinal, este instrumento musical tão singular,
podemos dizer que é uma vasilha de barro, semelhante a um alcatruz, mas sem
fundo, à qual se ata no topo uma pele, tendo presa ao centro uma cana muito
fina. Depois, com a mão molhada — alguns até usam uma esponja para que a cana
esteja sempre escorregadia —, pressionam-na e o som sai grave como um ronco
arrastado. A ronca, ou um objecto muito semelhante a ela terá sido trazida para
a Península Ibérica no século VIII, com a chegada de tribos berberes do Norte
de África, acreditam os seus entusiastas.
O oleiro
Como as
pessoas tinham poucas posses, a ronca foi um instrumento quase improvisado para
que emitisse um som e acompanhasse os cantares de Natal alentejanos. “A ronca
estava na casa de cada elvense”, conta Roberto Dores, 50 anos, jornalista
elvense regressado à terra há dois anos, que logo integrou o grupo, seguindo os
passos do pai, que fora também ele um grande entusiasta dos cânticos do Natal
de Elvas. “Isto é o recuperar de uma tradição que se estava a perder. Há uns
15, 20 anos cantava-se o Natal, mais no dia 24, já só na casa de cada um,
eventualmente nalguma taberna”, recorda.
Este
instrumento é também comum em toda a zona da raia — Alentejo, Extremadura. Na
Andaluzia há mesmo um grupo de andaluzes que tem grandes roncas, às quais
chamam “zambomba”.
O renascer
da ronca deve-se também ao engenho e arte do oleiro Luís Pedras, que, diz o
jornalista, “manteve a tradição viva”. Tem actualmente uma exposição na Casa da
Cultura de Elvas com dezenas de roncas, que podem ser vistas até ao próximo dia
6 de Janeiro.
Depois da
ronca, tudo se deve aos elementos deste grupo, que teimaram em não calar as
suas vozes. Hoje o grupo, que pertence à associação Arkus, tem 19 membros. Têm
perdido elementos, mas também têm entrado jovens e pessoas com experiência
musical para garantir que as memórias das consoadas dos avós não se perdem na
espuma dos dias.
Até há uns
anos, tocar a ronca era exclusivo dos homens. “Antes os homens não deixavam
entrar as mulheres nos grupos. Quando o grupo começou e entraram as primeiras
três mulheres, houve pessoas que torceram o nariz à ideia de ‘ter mulheres num
grupo de homens’.” Mas eles refutaram essa ideia. “Mulheres? Todas”, atira José
Martins, de 68 anos.
Apesar de
estar associado ao culto católico, ali os seus membros garantem que não fazem
distinção entre religiões. Nem géneros. Todos os que quiserem cantar o
Natal serão bem-vindos. Afinal, eles dizem que tocam e cantam até ficar sem voz
porque devem isso à sua cidade. “Nós fazemos isto pelo gosto e pela nossa
cidade.”
Os ensaios
começam em Outubro e, uma vez por semana, reúnem-se para ter tudo afinado para
as actuações que começam depois a partir de 8 de Dezembro. Este ano já contam
40 actuações. A Câmara de Elvas ajuda-os com a logística de arranjar capotes,
bonés e roncas para todos, assim como o transporte.
Este ano,
estiveram também em escolas espanholas cantar. Como estão numa zona raiana,
acabam por fazer parte do seu repertório alguns villancicos (canções
de Natal), típicos do país vizinho.
Carta de amor
Nas ruas de
Lisboa, que por estes dias se enchem de espanhóis de visita à capital, é ver
Carlos Mendes, o decano dos cantadores, a dar-lhes música ao som de Peces
en el rio. Os cantares e a ronca hão-de continuar, pelo menos, até ao dia
de Reis.
José Martins
arranca a explicação entusiasmado com a “carta de amor” escrita por Manuel de
Portugal (n. 1525), filho do primeiro conde do Vimioso e de dona Joana de
Vilhena, “a uma jovem linda que estava no séquito da rainha Dona Catarina, que
era dona Francisca de Aragão”. “Os trovadores da época todos lhes escreveram
cartas: Camões, Pêro de Andrade Caminha, Garçisanchez e este Manuel de
Portugal. Ela era camareira-mor da rainha Dona Catarina”, conta José, que é
também guia turístico em Elvas.
A carta,
datada de meados do século XVI, havia de fazer parte do Cancioneiro de Elvas,
manuscrito português dessa altura com música e poemas do Renascimento. E um dos
quatro, juntamente com o Cancioneiro de Lisboa, o Cancioneiro de Belém e o
Cancioneiro de Paris, do século XVI, que são hoje conhecidos. Houve ainda
outros autores espanhóis que escreveram villancicos, cuja obra foi
depois traduzida pelo “grande erudito, António Tomás Pires”, conta José, que
não esconde o orgulho de ver o instrumento que tem debaixo do braço associado à
memória do país. “Até as roncas de Elvas têm que ver com a história de
Portugal.”
Cristina
Faria Martins , in “Público”,
2/1/2020
Sem comentários:
Enviar um comentário