O nosso associado Manuel Franco partilhou com a ALDRABA um interessantíssimo artigo de Jaime Izquierdo, estudioso espanhol dos problemas do mundo rural, que conhecera no âmbito de um debate sobre modelos alternativos de recuperação do ecossistema das montanhas ibéricas.
Aqui reproduzimos esse artigo, que também reputamos de enorme atualidade.
Segundo descreve o Manuel, começaram por debater o plano de intervenção ambiental municipal da Covilhã, ouviram duas excelentes comunicações, uma do Jaime Izquierdo e outra do Arq. Henrique Pereira dos Santos sobre floresta e as consequências dos incêndios, numa perspetiva muito fundamentada, pragmática mas nada catastrófica, e acabaram a "pôr as mãos na massa numa ação de voluntariado de recuperação de terrenos ardidos na reitoria da UBI".
Aqui reproduzimos esse artigo, que também reputamos de enorme atualidade.
Segundo descreve o Manuel, começaram por debater o plano de intervenção ambiental municipal da Covilhã, ouviram duas excelentes comunicações, uma do Jaime Izquierdo e outra do Arq. Henrique Pereira dos Santos sobre floresta e as consequências dos incêndios, numa perspetiva muito fundamentada, pragmática mas nada catastrófica, e acabaram a "pôr as mãos na massa numa ação de voluntariado de recuperação de terrenos ardidos na reitoria da UBI".
Conforme escrevemos no agradecimento ao Manuel Franco, "o camponês tinha a precisão do cirurgião, a
visão do alquimista e a arte de um diretor de orquestra que em cada momento se
preocupava com a harmonia de tudo e de todos aqueles seres para que não
houvesse notas dissonantes no seu viver. No seu viver com todos!"
Depois de reintroduzir o urso nos
Pirenéus, o lince ibérico na Serra Morena, o pica-ossos nos Picos da Europa, o
bufo-real na Orihuela e a lebre do piornal em Sória, e antes que o façam com o
peneireiro e o galo-da-floresta, chegou a vez de reintroduzir o camponês, o
montanhês, na montanha.
Na sequência de controlo e de
manipulação da informação genética que fluía nos genes, destes às espécies e,
por último, aos ecossistemas, escapara-se-lhe a presença ativa de um animal racional
– o camponês, subespécie montanhês, que durante séculos tinha regulado,
estimulado, restringido ou potenciado os fluxos entre animais e plantas, entre
o solo e o voo, determinando o que se destinava ao cereal e ao bosque permanente
de frutas de outono ou ao carvalhal e não só isso.
Com as suas misturas e seleções acabou
por criar centenas de novas raças de animais e plantas — desde a vaca ratina à castanha
valduna— e com as suas manobras acabou por conseguir um equilíbrio entre as
partes. Fez tudo isso sem nunca ter ido à universidade e, o que é pior, a
universidade nunca foi ter com ele.
Com precisão de cirurgião, com
visão de alquimista, os fluxos de energia do sol, da água que move moinhos, da
gravidade, do herbívoro, do predador, do animal de tiro e do porco reciclador,
entravam e saíam por ciclos principais e secundários, em cadeias de alimentação
e realimentação, de duração anual, compassadas com as estações.
O camponês era então o diretor de
uma grande orquestra sinfónica que manobrava a batuta com que interpretava a
partitura do lugar, no que tinha sido, e para o que tinha sido, instruído, e
concertava todos os instrumentos da natureza para sobreviver e para propiciar
que nenhum deles, nenhuma das suas notas, nenhum dos músicos que zurravam ou
mugiam, deixassem de o fazer no ano seguinte.
Mas o camponês partiu, ou
expulsaram-no, do monte. E o desconcerto apropriou-se do lugar. Algumas
espécies dispararam os seus contingentes, outras perderam-se até desaparecer.
Chegaram com soluções desde fora "plantaremos pinhos nas montanhas"
disseram uns - "não, não, não, - disseram outros – reintroduziremos veados
e logo lhe chamaremos espaço natural".
Depressa o mosaico de terras,
socalcos, prados, costas, mato para estrume, malhadas e estábulos de inverno se
foi dissipando. A paisagem tornou-se mais basta, mais monótona e o matagal
expandiu-se como o colesterol nos obesos. Nada parecia ser a solução. As terras
donde os camponeses tinham feito um traje que recobria a natureza, começaram a
despir-se. O traje desfazia-se em pedaços puído pela negligência.
Entretanto, os cientistas
industriais e analíticos inventariavam e cartografavam uma a uma as plantas e
os burocratas tramitavam, perante a UNESCO, um novo reconhecimento honorífico
para o monte. Por sua parte, os partidos políticos e os seus aparatos de
governo, listavam as espécies em boletins oficiais e editavam luxuosos livros de
montanhas com modelos de photoshop. E
proibiu-se o corte de carrascos e o olhar de esguelha ao mergulhão.
E ninguém se lembrou que antes de
tudo isso, apenas umas décadas atrás, existia ali uma ordem consensual,
comunitária e oral, tão-só escrita em prescrições que, ao jeito de norma local
e religião laica de obrigatório cumprimento, regulavam as formas, os procedimentos
e os usos. As prescrições dos camponeses eram para os montes o que a Constituição
é para o Estado democrático.
Ninguém se dava conta de que o
mundo existia com independência da nossa capacidade para o investigar. Chegaram
os guardas, as mil normas distintas, as fiscalizações do meio ambiente e,
agora, chegam os turistas a observar os ursos e os jovens ultra atletas a
correr por uma terra abandonada à sua sorte. E chegou também o fogo, um antigo
criado do camponês que se reconvertera em chefe rufião de um bando de
delinquentes.
Mas um dia alguém perguntou
porque é que antes não havia incêndios, porque é que antes as espécies mais
oportunistas não se tinham desenvolvido, porque é que as mais invasivas não
eram tantas, porque é que as paisagens eram mais variadas, porque é que cada
lugar tinha um nome, um uso e uma função. E repararam então no camponês, no
pagador que assegurava as remunerações, no que fazia país, nomeava os sítios e
fazia trajes como paisagens. Repararam tanto no diretor de orquestra extinto
como no ruído insuportável que desde as Administrações fazemos agora no cenário
cada um tocando o seu apito.
"Já não há camponeses, mas
podemos voltar a fazê-los” disse alguém. "Ser camponês, uma nova
profissão", disse outro. A universidade, onde germinava hegemónica a
ciência da industrialização, deixou de armazenar mapas, informação e estatísticas
e, com muito menos dinheiro, começaram a semear sementes de conhecimento.
Saíram para as aldeias e perguntaram aos avós, pastores retirados.
Descobriram o pensamento sistémico,
os princípios agroecológicos aplicados e o empirismo brilhante dos aldeões.
Rebuscando nos patrões das velhas prescrições, encontraram soluções para
desenhar os novos trajes da paisagem. Reelegeram Carlos III e os ilustrados de
Pablo de Olavide, os institucionistas de Giner de los Ríos e Sierra Pambley.
Assim, a solução, finalmente, foi
deixar de remendar e atreverem-se a reintegrar os camponeses nas montanhas
órfãs, sem dúvida os seus melhores sócios.
Recolonizaram-na com os
montanheses, com as suas comunidades e com as suas culturas locais. Regressaram
mais jovens, melhor preparados. Com privilégios como os de Leitariegos. Livres
de impostos contanto que o monte ficasse livre de incêndios, produzisse os
queijos, as energias e as carnes que lhes são próprias e conservassem as formas
paisagísticas ajustadas, em acordo com o Governo. O camponês, uma espécie extinta
no século XX que foi necessário reproduzir antes de a reintroduzir no XXI -e já
que a reproduzimos, a melhoramos— encarregou-se de devolver a música ao monte e
a paisagem recobrou a harmonia perdida.
Não me recordo em que ano
recomeçou a recolonização camponesa da montanha. Mas o que de facto me lembro,
é que foi no mesmo ano em que ao Ministério de Fomento, Meio Ambiente e
Conservação da Natureza lhe mudaram o nome para o de Fomento do sentido comum
com os pés na terra e fecharam as Secretarias Técnicas.
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