terça-feira, 21 de dezembro de 2021

75 anos sobre a chacina da aldeia de Cambedo pelas forças militares do fascismo português e espanhol












Fazem hoje precisamente 75 anos, forças militarizadas da Guarda Nacional Republicana, da Guarda Fiscal e da Polícia Internacional e Defesa do Estado (PIDE), do lado português, e da Guardia Civil, do lado espanhol, cercaram e bombardearam com munições pesadas a aldeia de Cambedo da Raia, no concelho de Chaves, a poucos quilómetros da fronteira com Espanha, para aprisionar e assassinar os guerrilheiros antifranquistas que ali se refugiaram e as famílias portuguesas que os acolhiam.

No fim de semana de 18 e 19 de dezembro, um numeroso grupo de portugueses e galegos acorreram à aldeia mártir, para homenagear a sua população, aproveitando também para uma deslocação a Campobecerros, do lado de Ourense, onde existe uma evocação dos 3 portugueses (trabalhadores ferroviários) que foram assassinados em 1936 pelas falanges franquistas por serem ativistas republicanos.

A Aldraba esteve presente, através de dois dirigentes e do novo associado Xurxo Ayán, arqueólogo galego que tem trabalhado na recuperação das memórias destes acontecimentos.

Na homenagem ao povo de Cambedo, muito forte e emotiva, usaram da palavra representantes do NAM, do Museu do Aljube, da URAP, de coletividades locais e da Freguesia de Vilarelho da Raia, e atuou ainda o Coro da Achada.

Em toda esta jornada, ficou bem expressa a necessidade imperiosa de avivarmos a memória da repressão do fascismo, e o papel central da solidariedade entre os povos oprimidos.

Reproduzem-se de seguida algumas palavras da Paula Godinho, professora da Universidade Nova de Lisboa que, há 30 anos (!), tem trabalhado incansavelmente no desenterrar destas memórias:

"Depois de um silêncio ignominioso imposto aos habitantes da aldeia durante a ditadura, e que se prolongou pela democracia, com uma reputação que cobria de opróbrio um procedimento generoso e solidário, desde meados dos anos 1990 recuperou-se a memória do que ali ocorreu, sobretudo com apoios a partir da Galiza, do associativismo de Vilarelho e dos vizinhos de Cambedo. Em 1996 foi inaugurada uma placa que se tornou um lugar de memória, visitado por muitos, e que coloca Cambedo da Raia numa rota honrosa de defesa das vidas de quem procurava refúgio, como tanta gente o faz hoje. Foram feitas várias reportagens para diversos jornais e televisões do mundo, cursos de verão, congressos. Assistimos também à atribuição de honras aos vizinhos pela Diputación de Ourense, com uma ceia oferecida nessa cidade a todos os habitantes de Cambedo da Raia, que reuniu 600 pessoas; uma praça de Ourense consagra na toponímia da cidade os vizinhos desta aldeia; dois livros foram publicados na Galiza, um dos quais mereceu o prémio Taboada Chivite. Ambos esgotaram muito rapidamente, há mais de dez anos, um dos quais com três edições na Galiza.Vários documentários abordaram o ocorrido, dando-lhe projeção também em locais diversos do globo. Uma equipa de arqueologia de topo fez ali escavações em 2018, e divulgou o caso de Cambedo com novos dados desenterrados. Em congressos variados, na Europa e na América Latina, o assunto mereceu a atenção de académicos da área da história, da antropologia, da arqueologia, da ciência política, com uma divulgação relevante.

Para assinalar a passagem dos 75 anos do bombardeamento, foram publicadas este ano pela primeira vez em Portugal as duas obras que haviam sido alvo de grande interesse em Espanha. Organizou-se em Lisboa um congresso internacional com novos e pertinentes elementos, no local onde se deposita a memória da nação: o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, contando com o suporte total do seu diretor. Com toda a logística a cargo do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, organizou-se uma deslocação de 50 pessoas, de autocarro, a partir de Lisboa, contando com o apoio local da Junta de Freguesia de Vilarelho da Raia, do Centro Social, Cultural e Desportivo de Vilarelho da Raia e da Associação Desportiva, Cultural e Recreativa de Cambedo, de cujos membros guardamos a imagem da comoção pela homenagem do passado sábado. Juntou-se à iniciativa o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, do Forte de Peniche, oferecendo uma coroa de flores, encomendada a uma florista de Chaves. O Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do IN2PAST – Laboratório Associado para a Inovação e Investigação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território, deu o apoio científico e logístico à iniciativa, garantindo o pagamento da deslocação de vários participantes na conferência que se realizou em Lisboa. O Histagra e o Proxeto Universitário Nomes e Voces, associado à Memória Histórica da guerra de Espanha na Universidade de Santiago de Compostela, uniram-se à iniciativa, bem como a UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A Asociación de Amigos da Republica (de Ourense), a União dos Resistentes e Antifascistas Portugueses (URAP), o Movimento Cívico "Não Apaguem a Memória”, e várias outras organizações juntaram-se-nos em diversas fases desta homenagem. Vários membros do executivo da Mancomunidade de Verín, vereadores municipais, fizeram questão de estar presentes no último sábado na homenagem realizada em Cambedo da Raia, que contou com a atuação muito comovente do Coro da Achada (da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio), e de vários grupos de música tradicional. Todos se deslocaram inteiramente a expensas suas, a partir de Lisboa, do Porto, do estado espanhol. Cerca de 70 pessoas que vieram de pontos diversos do país e da Galiza, ficaram alojadas na cidade de Chaves, em hotéis e residenciais. Alguns contaram com a hospitalidade de vizinhos galegos de Mandín, que lhes abriram a porta de casa. Estas pessoas comeram nos restaurantes, compraram recordações e fizeram despesa nos estabelecimentos da cidade, num ano funesto para o turismo e o comércio, devido à pandemia, e num momento de época baixa. Muitos voltarão para revisitar o concelho e a fronteira, porque se cativaram pelas memórias ali guardadas.

Coube-me pôr em prática esta homenagem, contando com todas estas entidades porque realizei investigação sobre o assunto, e porque sinto como privilégio ter vivido durante muitos meses de trabalho de campo entre os vizinhos de Cambedo, em 1987-88, e em revisitações posteriores constantes. Quero transmitir a todos – e àqueles que representam – a minha enorme gratidão por terem estado disponíveis e entusiasmados, por se terem entregado às tarefas e despesas inerentes, com a finalidade generosa de recordar um exemplo que tomamos como nosso, por terem aceitado encargos, trabalho e prejuízos pessoais para o fazer.

Estranhamente, foi a Câmara Municipal de Chaves (CMC) a grande ausente. Depois de sucessivamente lhes enviar mails ao seu presidente, sempre sem resposta, em fases diversas de todas iniciativas que enquadraram as comemorações destes 75 anos do cerco e bombardeamento, só tardiamente seria contactada via telefone por uma funcionária camarária, alegadamente indigitada pelos seus superiores. Nem o presidente nem o vereador da área jamais me receberam ou contactaram, embora tivesse feito várias tentativas nesse sentido, em momentos diversos. Nunca houve qualquer entusiasmo pelas comemorações, e, em momentos sucessivos, fui confrontada com o boicote das iniciativas, fazendo cair os curtos compromissos em que aparentemente aceitavam envolver-se. Mais, tratavam de modo indigno os elementos da organização, rasteirando de maneiras vários o que se preparava, e assim provocando um imenso desgaste e perda de tempo entre quem, com generosidade, se entregava a esta homenagem. Que terá levado a Câmara Municipal de Chaves a esta atitude? Onde deixou guardada a proverbial hospitalidade transmontana, que todas as outras entidades tão bem demonstraram? Por que foram fechando sucessivamente portas, negando-se a participar em momentos honrosos, de reconhecimento a uma aldeia do seu concelho, reconhecidos como tal pela sua congénere galega do outro lado da fronteira? Por que sabotaram a passagem na cidade de Chaves do filme «O Silêncio», de António Loja Neves e José Alves Pereira, aparentemente querendo descartar-se de responsabilidades na verificação dos certificados COVID, e tentando remetê-la para outros coorganizadores, de um modo aviltante inaceitável? Por que razão não procuraram alternativas de alojamento para alguns dos membros do Coro da Achada, a que se haviam comprometido, depois de tal não ser possível no quartel? Por que razão não se reconhecem no exemplo dos vizinhos de Cambedo, e hostilizam os que o prezam, demonstrando-lhes continuamente quão indesejáveis são ao deslocarem-se ao concelho? A pandemia obriga-nos a funcionar com as devidas cautelas, e a respeitar escrupulosamente as instruções da Direção Geral da Saúde, mas por todo o país continuaram a realizar-se intervenções cívicas e espetáculos variados, porque a vida pública assim o exige, e é próprio das democracias. Quando existe interesse e empenhamento, encontra-se soluções; foi o contrário daquilo com que deparámos do lado da CMC. A homenagem fez-se, apesar da Câmara Municipal de Chaves, e continuaremos a propagar pelo mundo o exemplo dos vizinhos de Cambedo e a denúncia das ditaduras ibéricas. Fazer investigação e servir as populações não está separado de uma atitude cívica, e quem preza a democracia sabe de quem se sente herdeira. É assim com quantos quiseram juntar-se-nos, embora com custos pessoais."

JAF

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