A sua forma essencial é de ar articulado. Mas também pode ser de letras ou
de gestos.
Uma sociedade de palavras chama-se língua.
Há famílias de línguas, línguas maternas, línguas irmãs, línguas de origem,
línguas de contacto. Nascem, crescem, decaem, ficam moribundas e morrem. Nelas
há produção e reprodução. Há palavras masculinas, femininas e neutras. Até há
algumas que são pares mínimos! Palavras de todos os tempos: imperfeitos,
perfeitos e mais que perfeitos; do passado, do presente e do futuro. Há
primeira pessoa, segunda pessoa... até à sexta que são os eles todos. Fazem
flexões e conjugações. As palavras perduram mais que as pessoas de carne e
osso.
A maioria são feitas da matéria de outras que viveram antes delas. Vão
fermentando sentidos com que captam o colorido do mundo. Vão lançando pequenos
tentáculos como prefixos e sufixos e com eles expressam o carinho, a pequenez,
a grandeza, a futilidade, a abundância, a repetição, a ausência, o modo, o
ofício, o acto e o abstracto.
As palavras conhecem o seu lugar na sociedade. Sabem que um sujeito só o é
quando um verbo o espera. Que há acções que actuam sem qualquer sujeito
visível, como “chover”, embora a chuva se veja muito bem. Viver tem sempre
sujeito, mas o sujeito também existe mesmo se o seu verbo for morrer.
As palavras juntam-se com traços de união que são as alianças delas.
Muitas sobrevivem de embarcar em contentores de navios, outras, temerosas e
tremendas, escondem-se em labirintos de sussurros, outras pipilam quiquiriquis
em lábios de criança, outras são forjadas e polidas em salões de espelho a fim
de matar outras que nascem nos montes aos molhos.
Grandioso e formigueiro é o povo das palavras.
Há palavras vítimas ou triunfantes ou heroínas. As vítimas ficam agarradas
a tempos arrepiantes, multiplicando vítimas entre os seres vivos. “Apocalipse”,
“Holocausto”, “Hiroshima”, “Miséria”. As triunfantes agarram-se com desespero
ao momento que passa, famintas de eco. “Ganhar”. “Vencer”. “Conquistar”.
“Ambição”. As heroínas são as que arrancam alguém à atrocidade do sofrimento.
Ninguém diria, ao ouvi-las, que são heroínas. “Bisturi!” - e o moribundo
revive. “Bombeiros” – e o perigo é debelado. “Coragem!” – e alguém consegue
aguentar mais um pouco, “Segure-se!” – e a velhinha que não conseguia descer as
escadas é levada pelo braço de um príncipe sonhado, como num feitiço de
beladona.
Importantes, as palavras assassinas :“Fome”, “Sede”, “Morte”, “Dor”,
“Ódio”, “Incompetente!” ,“Está despedido!”, “Corrupto!”, “Pedófilo!”,
“Austeridade”, “Doença”... além de ditador, carrasco, tortura, todas com letra
pequena por desalmadas que são.
Para as palavras assassinas e malfeitoras não existem prisões. Elas
esvoaçam como as outras , mas por onde passam deixam um rasto de infelicidade.
Enquanto as palavras boas... as que aparecem em todos os manuais da civilidade,
essas fazem o mundo rodar melhor. “Amor”, “Paz”, “Felicidade”, “Saúde”...“Um
copo”.
Podia falar também das maleitas que acometem as palavras, sobretudo quando
existem sob a forma de letras. Mas adiante.
Resumindo, acontece com as palavras exactamente o mesmo que acontece
connosco, pessoas de carne e osso. E de palavra.
As pessoas são o conjunto de todas as palavras que conseguem dizer e
provocar, enquanto as palavras são escravas livres, ao serviço da gente. Que
tolice. Livres? As palavras escravas? Que te parece, amig@, a ti que tanto
sobre elas, com elas, meditas?
5/6/2020
Manuela
Barros Ferreira
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