sexta-feira, 5 de junho de 2020

O povo das palavras










A sua forma essencial é de ar articulado. Mas também pode ser de letras ou de gestos.

Uma sociedade de palavras chama-se língua.

Há famílias de línguas, línguas maternas, línguas irmãs, línguas de origem, línguas de contacto. Nascem, crescem, decaem, ficam moribundas e morrem. Nelas há produção e reprodução. Há palavras masculinas, femininas e neutras. Até há algumas que são pares mínimos! Palavras de todos os tempos: imperfeitos, perfeitos e mais que perfeitos; do passado, do presente e do futuro. Há primeira pessoa, segunda pessoa... até à sexta que são os eles todos. Fazem flexões e conjugações. As palavras perduram mais que as pessoas de carne e osso.

A maioria são feitas da matéria de outras que viveram antes delas. Vão fermentando sentidos com que captam o colorido do mundo. Vão lançando pequenos tentáculos como prefixos e sufixos e com eles expressam o carinho, a pequenez, a grandeza, a futilidade, a abundância, a repetição, a ausência, o modo, o ofício, o acto e o abstracto.

As palavras conhecem o seu lugar na sociedade. Sabem que um sujeito só o é quando um verbo o espera. Que há acções que actuam sem qualquer sujeito visível, como “chover”, embora a chuva se veja muito bem. Viver tem sempre sujeito, mas o sujeito também existe mesmo se o seu verbo for morrer.

As palavras juntam-se com traços de união que são as alianças delas.

Muitas sobrevivem de embarcar em contentores de navios, outras, temerosas e tremendas, escondem-se em labirintos de sussurros, outras pipilam quiquiriquis em lábios de criança, outras são forjadas e polidas em salões de espelho a fim de matar outras que nascem nos montes aos molhos.

Grandioso e formigueiro é o povo das palavras.

Há palavras vítimas ou triunfantes ou heroínas. As vítimas ficam agarradas a tempos arrepiantes, multiplicando vítimas entre os seres vivos. “Apocalipse”, “Holocausto”, “Hiroshima”, “Miséria”. As triunfantes agarram-se com desespero ao momento que passa, famintas de eco. “Ganhar”. “Vencer”. “Conquistar”. “Ambição”. As heroínas são as que arrancam alguém à atrocidade do sofrimento. Ninguém diria, ao ouvi-las, que são heroínas. “Bisturi!” - e o moribundo revive. “Bombeiros” – e o perigo é debelado. “Coragem!” – e alguém consegue aguentar mais um pouco, “Segure-se!” – e a velhinha que não conseguia descer as escadas é levada pelo braço de um príncipe sonhado, como num feitiço de beladona.

Importantes, as palavras assassinas :“Fome”, “Sede”, “Morte”, “Dor”, “Ódio”, “Incompetente!” ,“Está despedido!”, “Corrupto!”, “Pedófilo!”, “Austeridade”, “Doença”... além de ditador, carrasco, tortura, todas com letra pequena por desalmadas que são.

Para as palavras assassinas e malfeitoras não existem prisões. Elas esvoaçam como as outras , mas por onde passam deixam um rasto de infelicidade. Enquanto as palavras boas... as que aparecem em todos os manuais da civilidade, essas fazem o mundo rodar melhor. “Amor”, “Paz”, “Felicidade”, “Saúde”...“Um copo”.

Podia falar também das maleitas que acometem as palavras, sobretudo quando existem sob a forma de letras. Mas adiante.

Resumindo, acontece com as palavras exactamente o mesmo que acontece connosco, pessoas de carne e osso. E de palavra.

As pessoas são o conjunto de todas as palavras que conseguem dizer e provocar, enquanto as palavras são escravas livres, ao serviço da gente. Que tolice. Livres? As palavras escravas? Que te parece, amig@, a ti que tanto sobre elas, com elas, meditas?

5/6/2020


Manuela Barros Ferreira






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