sábado, 17 de novembro de 2018

Memórias dispersas



















Pré-publicação do artigo que a nossa associada Rosa Honrado Calado escreveu, acerca do seu tio João Honrado, para o n.º 24 da revista ALDRABA, que se encontra no prelo:

Nascer no país mais ocidental da Europa virado para o mar, com uma superfície geográfica e humana diversificada e atraente, na 2ª metade  do séc. XX, também é um acto de “pontaria”.
As discrepâncias de vida, o atraso geral em relação ao continente europeu, a que pertence, eram assinaláveis.
A geração dessa época foi marcada por um governo autoritário e vigilante que tornou a vida deste país “tranquila, ordenada, pacata, vigiada, segura, etc, etc…”, de tal modo que até as chocantes assimetrias sociais impunham-se e não podiam ser referidas. Eram “naturais”.
Pronto, está descrito o local destas memórias que vão remontar a uma vila alentejana, interior, situada mais a sul.
Num 1º cenário, sabemos pelo povo da vila duma notícia – “vai haver um casamento”. Todos conhecem as famílias dos noivos, eles vão casar em casa, pelo registo. A boda é caseira, mas preparada com o que de melhor se pode arranjar. As portas da casa estão abertas para receberem os amigos, vizinhos e família, como era de tradição.
Todos se conhecem. Acolá, vê-se ali um moço alto, um pouco desengonçado, curioso, falador, brincalhão, mas sempre atento, é o irmão mais novo do noivo, o João. Este moço já era conhecido como contestatário, ”contra o Salazar”, pois até já tinha estado preso em Caxias por ter ousado distribuir panfletos contra o ditador, no teatro Pax Julia, em Beja. Tinha amigos e camaradas, entre eles o irmão mais velho (o noivo), que em 1945, na calada da noite, pintaram as paredes do cemitério, a zona mais alta da vila, e deitaram foguetes para saudar o fim da guerra e a vitória dos aliados.
Mas, naquele dia, dia de festa, de casamento, o que o povo de Ferreira, os convidados e amigos não esperavam era assistir àquele insólito fim de festa. Sim, os agentes da PIDE entraram pela sala da boda e prenderam o jovem João Honrado. Muitos seguiram com protestos o carro que o encarcerava, outros choravam e não se conformavam. A vila assistia a mais uma repressão que ficaria sem resposta, gravada na memória de muitos. Depois duma boda com um triste final, que marcou a família e o povo daquela vila, o João passou mais alguns meses nas masmorras das cadeias políticas, onde contraiu tuberculose e sob prisão foi transferido para um sanatório no Caramulo. Saiu da cadeia em 1954 e entra de imediato na clandestinidade.
Nas casas da família Honrado, falava-se com muitos silêncios e cautelas quando o tema era o tio João. Ninguém sabia onde estava, como estava, dizia-se: “deve estar bem”, “preso não está”, “seguiu o caminho da sua luta”. Durante 7 anos, na “Pensão Honrado”, onde ficaram a morar o casal (da triste boda) e mais uma filha que veio aumentar o agregado, surgiam pessoas que falavam baixo, não saíam dos quartos, pareciam “sombras”, trocavam papéis e rapidamente desapareciam.
Em Fevereiro de1958, morreu António José Honrado, o patriarca da família, de morte súbita. Os algozes planearam que o filho clandestino poderia, disfarçadamente, comparecer. Lá dentro chorava-se o ente querido, o ausente e o cerco policial. Os amigos que chegavam mais embuçados eram destapados e durante o funeral o cordão policial manteve-se vigilante até ao cemitério. A nossa família estava arrasada, os amigos e as gentes da cidade puderam comprovar como eram desrespeitados os momentos mais dolorosos duma família. Dias depois, ainda me recordo de ter chegado com os meus pais a casa dos meus avós e ter deparado com um cenário inaudito: roupas, louças, gavetas, malas foram despejadas e desarrumadas. Era mais uma busca. Foi mais um cenário que não dá para esquecer. A minha avó, mulher firme e lutadora, manteve-se sempre à frente de mais esta “prova”.
Em 1962, através da imprensa, soubemos que o tio João fora preso em Coimbra e recomeça mais um calvário, porque não obtínhamos mais notícias. Durante meses, os irmãos percorreram repartições, fizeram pedidos, requerimentos e regressavam só com o desalento. Foram meses duma espera dolorosa. Sabíamos e sofríamos com a convicção de que o nosso ente querido estava a ser torturado e a sofrer as piores sevícias. Passados meses, pudemos visitá-lo no Forte de Peniche. Separadas as visitas dos reclusos por vidros e balcões de pedra, conseguíamos ainda detectar as marcas das torturas físicas e psicológicas. Inicia-se um período de incertezas, de visitas ultracontroladas, de proibições. Preparávamos, durante semanas, o que podíamos levar de Beja a Peniche, percorríamos com ansiedade tantos quilómetros, mas a visita podia ser proibida. Porquê? Porque ao batermos ao portão e, após aguardarmos as inspecções sobre as encomendas que entregávamos, podíamos ouvir do guarda a comunicação, dita com alguma alegria: ”o sr. Honrado está proibido de receber visitas”, sem mais explicações. Claro, vínhamos depois a saber que tinha entrado, com outros camaradas, numa greve de fome ou participado no protesto contra as bárbaras condições que havia dentro das cadeias.
Em 1963, fomos surpreendidos com a notificação de que tínhamos de nos dirigir, rapidamente, à cadeia do Porto, onde iriam entregar-nos uma criança de 3 anos, filha do tio João e duma camarada, nascida durante a clandestinidade. O processo foi do mais célere, porque a menina estava gravemente doente e seria um escândalo internacional se o pior viesse a acontecer. A nossa família recebeu a menina quase em estado de coma. Felizmente, graças aos cuidados da família e de muitos amigos, a minha prima sobreviveu. Mais haveria para contar, mas fico por aqui.
Em modo de fecho, quero apenas explicar que decidi escrever estas memórias porque sei que há toda uma geração que, passados 44 anos sobre o Dia da Liberdade, o nosso 25 de Abril, desconhece ainda episódios da história negra da ditadura, que assolou e marcou este país.
Quero terminar com uma mensagem de optimismo, contando que o tio João viveu e lutou intensamente após o 25 de Abril, sem mágoas, sem vinganças, com alegria e sempre querendo fazer mais e mais, até ser impedido pela doença.
Como não sei defini-lo melhor, tive a sorte de ter encontrado, escrita pelo nosso amigo Eduardo Olímpio, a definição que subscrevo:

“O João foi doutorado em Alentejo e Amor”.

Rosa Honrado Calado

2 comentários:

  1. Excelente texto da minha amiga Rosa Honrado sobre o tio João. Grande Homem que muito nos marcou e que sempre terei presente. Por ele tenho um enorme carinho e uma profunda saudade. Obrigada Rosa. Obrigada tio João.

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  2. Excelente, emocionante texto. Aqui no Brasil vemos hoje elogios à ditadura, vindo de diversas camadas sociais. É sombrio, é terrível, é cansativo.

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