Pré-publicação do artigo que a nossa associada Rosa Honrado Calado escreveu, acerca do seu tio João Honrado, para o n.º 24 da revista ALDRABA, que se encontra no prelo:
Nascer no país mais
ocidental da Europa virado para o mar, com uma superfície geográfica e humana
diversificada e atraente, na 2ª metade
do séc. XX, também é um acto de “pontaria”.
As discrepâncias de
vida, o atraso geral em relação ao continente europeu, a que pertence, eram
assinaláveis.
A geração dessa
época foi marcada por um governo autoritário e vigilante que tornou a vida
deste país “tranquila, ordenada, pacata, vigiada, segura, etc, etc…”, de tal
modo que até as chocantes assimetrias sociais impunham-se e não podiam ser
referidas. Eram “naturais”.
Pronto, está
descrito o local destas memórias que vão remontar a uma vila alentejana,
interior, situada mais a sul.
Num 1º cenário,
sabemos pelo povo da vila duma notícia – “vai haver um casamento”. Todos
conhecem as famílias dos noivos, eles vão casar em casa, pelo registo. A boda é
caseira, mas preparada com o que de melhor se pode arranjar. As portas da casa
estão abertas para receberem os amigos, vizinhos e família, como era de
tradição.
Todos se conhecem.
Acolá, vê-se ali um moço alto, um pouco desengonçado, curioso, falador,
brincalhão, mas sempre atento, é o irmão mais novo do noivo, o João. Este moço
já era conhecido como contestatário, ”contra o Salazar”, pois até já tinha
estado preso em Caxias por ter ousado distribuir panfletos contra o ditador, no
teatro Pax Julia, em Beja. Tinha amigos e camaradas, entre eles o irmão mais
velho (o noivo), que em 1945, na calada da noite, pintaram as paredes do cemitério,
a zona mais alta da vila, e deitaram foguetes para saudar o fim da guerra e a
vitória dos aliados.
Mas, naquele dia,
dia de festa, de casamento, o que o povo de Ferreira, os convidados e amigos
não esperavam era assistir àquele insólito fim de festa. Sim, os agentes da
PIDE entraram pela sala da boda e prenderam o jovem João Honrado. Muitos
seguiram com protestos o carro que o encarcerava, outros choravam e não se
conformavam. A vila assistia a mais uma repressão que ficaria sem resposta,
gravada na memória de muitos. Depois duma boda com um triste final, que marcou
a família e o povo daquela vila, o João passou mais alguns meses nas masmorras
das cadeias políticas, onde contraiu tuberculose e sob prisão foi transferido
para um sanatório no Caramulo. Saiu da cadeia em 1954 e entra de imediato na
clandestinidade.
Nas casas da
família Honrado, falava-se com muitos silêncios e cautelas quando o tema era o
tio João. Ninguém sabia onde estava, como estava, dizia-se: “deve estar bem”,
“preso não está”, “seguiu o caminho da sua luta”. Durante 7 anos, na “Pensão
Honrado”, onde ficaram a morar o casal (da triste boda) e mais uma filha que
veio aumentar o agregado, surgiam pessoas que falavam baixo, não saíam dos
quartos, pareciam “sombras”, trocavam papéis e rapidamente desapareciam.
Em Fevereiro
de1958, morreu António José Honrado, o patriarca da família, de morte súbita.
Os algozes planearam que o filho clandestino poderia, disfarçadamente,
comparecer. Lá dentro chorava-se o ente querido, o ausente e o cerco policial.
Os amigos que chegavam mais embuçados eram destapados e durante o funeral o
cordão policial manteve-se vigilante até ao cemitério. A nossa família estava
arrasada, os amigos e as gentes da cidade puderam comprovar como eram
desrespeitados os momentos mais dolorosos duma família. Dias depois, ainda me
recordo de ter chegado com os meus pais a casa dos meus avós e ter deparado com
um cenário inaudito: roupas, louças, gavetas, malas foram despejadas e
desarrumadas. Era mais uma busca. Foi mais um cenário que não dá para esquecer.
A minha avó, mulher firme e lutadora, manteve-se sempre à frente de mais esta
“prova”.
Em 1962, através da
imprensa, soubemos que o tio João fora preso em Coimbra e recomeça mais um
calvário, porque não obtínhamos mais notícias. Durante meses, os irmãos
percorreram repartições, fizeram pedidos, requerimentos e regressavam só com o
desalento. Foram meses duma espera dolorosa. Sabíamos e sofríamos com a
convicção de que o nosso ente querido estava a ser torturado e a sofrer as piores
sevícias. Passados meses, pudemos visitá-lo no Forte de Peniche. Separadas as
visitas dos reclusos por vidros e balcões de pedra, conseguíamos ainda detectar
as marcas das torturas físicas e psicológicas. Inicia-se um período de
incertezas, de visitas ultracontroladas, de proibições. Preparávamos, durante
semanas, o que podíamos levar de Beja a Peniche, percorríamos com ansiedade
tantos quilómetros, mas a visita podia ser proibida. Porquê? Porque ao batermos
ao portão e, após aguardarmos as inspecções sobre as encomendas que
entregávamos, podíamos ouvir do guarda a comunicação, dita com alguma alegria: ”o
sr. Honrado está proibido de receber visitas”, sem mais explicações. Claro,
vínhamos depois a saber que tinha entrado, com outros camaradas, numa greve de
fome ou participado no protesto contra as bárbaras condições que havia dentro
das cadeias.
Em 1963, fomos
surpreendidos com a notificação de que tínhamos de nos dirigir, rapidamente, à
cadeia do Porto, onde iriam entregar-nos uma criança de 3 anos, filha do tio
João e duma camarada, nascida durante a clandestinidade. O processo foi do mais
célere, porque a menina estava gravemente doente e seria um escândalo
internacional se o pior viesse a acontecer. A nossa família recebeu a menina
quase em estado de coma. Felizmente, graças aos cuidados da família e de muitos
amigos, a minha prima sobreviveu. Mais haveria para contar, mas fico por aqui.
Em modo de fecho,
quero apenas explicar que decidi escrever estas memórias porque sei que há
toda uma geração que, passados 44 anos sobre o Dia da Liberdade, o nosso 25 de
Abril, desconhece ainda episódios da história negra da ditadura, que assolou e
marcou este país.
Quero terminar com
uma mensagem de optimismo, contando que o tio João viveu e lutou intensamente
após o 25 de Abril, sem mágoas, sem vinganças, com alegria e sempre querendo
fazer mais e mais, até ser impedido pela doença.
Como não sei
defini-lo melhor, tive a sorte de ter encontrado, escrita pelo nosso amigo
Eduardo Olímpio, a definição que subscrevo:
“O João foi
doutorado em Alentejo e Amor”.
Rosa Honrado Calado
Excelente texto da minha amiga Rosa Honrado sobre o tio João. Grande Homem que muito nos marcou e que sempre terei presente. Por ele tenho um enorme carinho e uma profunda saudade. Obrigada Rosa. Obrigada tio João.
ResponderEliminarExcelente, emocionante texto. Aqui no Brasil vemos hoje elogios à ditadura, vindo de diversas camadas sociais. É sombrio, é terrível, é cansativo.
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