Pelo seu indiscutível interesse, reproduz-se o artigo da jornalista Joana Amaral Cardoso, hoje editado no jornal "Público":
O penico perdeu terreno para o saneamento das casas, deixou o interior
das mesas-de-cabeceira e tornou-se uma brincadeira de crianças. Mas a sua força
na cultura é maior do que um objecto – é uma palavra e uma piada para todo o
serviço, de Bordallo Pinheiro a Ricardo Araújo Pereira. Na segunda série
Objectos (quase) obsoletos olhamos para o que foi substituído, eliminado ou
transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas.
O
que têm em comum Ricardo Araújo Pereira, Raphael Bordallo Pinheiro, a cidade de
Braga, a banda punk Garotos Podres e os portugueses que não usam fraldas? Um
objecto tão importante que já motivou a intervenção da Entidade Reguladora para
a Comunicação, serviu de reacção ao Ultimato de 1890 de Inglaterra a Portugal e
educou muitas gerações de portugueses na arte de controlar as suas necessidades
fisiológicas. O penico é dos céus quando falamos de Braga e de outras
localidades onde muito chove, e é dos diabos quando leva o advogado Marinho e
Pinto a queixar-se de uma rábula de um humorista. Já dormiu debaixo de nós ou à
nossa cabeceira, agora é uma brincadeira de crianças.
Há
um tempo antes e um tempo depois do penico. Ou do bacio, se se preferir. Há uma
era do penico no mobiliário, em que as mesas-de-cabeceira tinham uma tipologia
própria, paralelepípedos com uma porta na base para se guardar o bacio para as
urgências nocturnas. Há uma era do penico no urbanismo português, quando o
saneamento básico ainda era uma história de água vai, bem medieval, janela
fora, e um pós-penico quando, há pouquíssimas décadas, a existência de uma casa
de banho e de uma sanita em cada vez mais casas o remeteu para a actual vida de
um bacio - ser um marco no crescimento do ser humano quando se abandona as
fraldas e se passa ao penico, para depois se graduar na reluzente sanita.
Hoje,
o penico não é tanto obsoleto quanto o é predilecto dos miúdos para as jovens
escatologias. Houve um tempo em que estava por toda a casa, porque a casa era
“muito engraçada/ não tinha tecto /não tinha nada” e quando “ninguém podia
fazer pipi/ [era] porque penico não tinha ali” - a música A casa, com letra de
Vinicius de Moraes, manifesta bem a sua importância, ao lado de tectos e
paredes. Era essencial em qualquer casa.
A
sua história remonta ao século VI a.C. e aos gregos que o inventaram, tendo o
seu uso sido popularizado na Idade Média mas sobretudo do século XIV em diante.
O seu formato e materiais variavam, do metal ao barro e à loiça, passando pelo
estanho. A certa altura ganhava uma estrutura adjacente, uma cadeira em sua
volta, sobretudo para os ricos burgueses e nobres. A arte manteve-o na imagem.
Pieter Bruegel, o Velho, pintou no seu Caritas? (1559) um penico bem detalhado,
mais uma vez junto de um acamado. Frédéric Bazille pinta em 1865L'ambulance
improvisée (Monet blessé à l'hôtel du Lion d'Or à
Chailly-en-Bière), que está exposto no Musée d'Orsay, em Paris. Nele, o seu amigo e pintor Claude Monet está de cama,
ferido, e com um penico bem perto de si. E naUtopia (1516) de Thomas More os
penicos eram satiricamente feitos de ouro. Há meros 15 anos nascia em
Portugal a banda Penicos
de Prata, que musica a sátira de grandes poetas portugueses, de Pessoa a
Adília Lopes.
Depois
de décadas debaixo das camas ou dentro das mesas-de-cabeceira, Portugal guarda
os seus penicos nos sítios mais inesperados.
N’Uma Aventura no Palácio da Pena (2012), Ana Maria Magalhães e
Isabel Alçada escrevem como as gémeas Teresa e Luísa, escondidas no palácio em
Sintra, se deparam com um “penico de loiça antiga, muito fora do vulgar pois
tinha tampa”. Era o penico da rainha D. Amélia, um de vários que os museus portugueses
guardam.
Estão
também na habitual montra que prova a passagem de um objecto para o ramo do
passado, nas lojas de antiguidades, nos sites coleccionadores, mas também, no
seu formato mais comum de há 70, 60, 50 ou 40 anos - uma bacia de estanho, porcelana
ou plástico, com uma indispensável pega - à venda em sites como o OLX com o
inevitável epíteto “vintage”. Há uma nostalgia do penico, como comprova a
olaria Oficina da Formiga, em Ílhavo, que continua a fazer penicos em cerâmica
tradicional e “transmitindo os sentimentos de saudade e tradição nas peças” que
produz.
Do
penico ao telemóvel
Há 80 anos, nem o penico era usual no campo português,
como mostram os resultados do Inquérito à habitação rural dos anos 1940, citado
no terceiro volume da História
da Vida Privada em Portugal de
José Mattoso. “As dejecções são feitas em pleno campo, numa estrumeira do
exterior da casa ou mesmo na corte do gado.”
Três décadas depois, o Censo de
1970 dizia-nos que só 29% das casas portuguesas tinham em simultâneo o que a
historiadora Sandra Marques Pereira considera os “quatro requisitos mínimos de
modernidade”: “água, luz, banho e retrete”. A concentração de modernidade era
maior nas cidades do litoral e menor no interior.
O
cenário torna-se mais confortável nos estudos populacionais seguintes, porque
entre 1981 e 2001, escreve-se na mesma obra, a percentagem de habitações sem
instalação de banho desce dos quase 40% para pouco mais de 5% e a percentagem
de casas que não dispunham de retrete dos 20% para os 6%. É paralelamente a
este avanço de saneamento que o penico recua.
“Lembro-me
de utilizar quando era pequena e numa altura em que não havia casas de banho.
Hoje não tenho bacio e penso que é um objecto que está em desuso. Só as
crianças e os idosos é que ainda o usam”, dizia em 2005 Teodora Maria, de
64 anos e natural de Vila Viçosa, ao Correio
da Manhã. O jornal inquiria os visitantes de uma exposição de 170 penicos
em miniatura, um “enorme sucesso”. Outra visitante, de 13 anos, confirmava a
actual vida do bacio - “Na minha casa só a minha irmã, que tem agora dois anos,
é que usa o bacio. O meu avô também tem um debaixo da cama ou dentro da
mesa-de-cabeceira e usa-o no quarto para não ter que descer as escadas”,
contava Cátia Rebocho.
Actualmente,
só há um modelo de mesa-de-cabeceira com portinhola e o espaço que há décadas
era reservado para o penico à venda no prolífero Ikea. A imagem de catálogo
mostra que agora atrás dessa porta moram idealmente alguns papéis e um
telemóvel. A Conforama também vende mesinhas de cabeceira com um
texto tranquilizador: “Por fim, é chegado o momento de descansar. E nada
melhor do que estar deitado na sua cama e saber que tem tudo aquilo de que
necessita ao alcance da sua mão. Coloque sobre a mesinha de cabeceira uma lâmpada
prática, um objecto decorativo ou deixe o telemóvel enquanto ele se carrega”.
Nada de penicos, só telemóveis, objecto associado a outro tipo de chamadas
nocturnas.
A
palavra penico foi então substituída, ainda que simbolicamente, pela palavra
telemóvel. Mas se objecto penico reduziu o seu raio de acção, a sua presença na
cultura mantém-se forte precisamente no verbo.
“Penico”
significa
um ”recipiente próprio para se urinar e defecar; bacio; pote; bispote”.
Diz a Infopédia que a palavra penico é “de origem obscura”. Já o bacio tem nome
mais fácil de recuperar, vem “do latim popular baccinu,
‘vaso de madeira’”. É uma palavra e um objecto que carrega consigo
outros sentidos.
À
cabeça vem o humor, relacionado com a vergonha que a cultura ocidental associa
a actos tão naturais e essenciais como respirar e comer - defecar e urinar. O
dramaturgo George Bernard Shaw dizia, sobre a invenção da irmã mais velha do
penico, a retrete ou sanita, que “só uma sociedade muito refinada é capaz de
pensar nestas coisas e, ao mesmo tempo, ruborizar-se ao falar delas”. É também
sua a acepção algo depreciativa. A um objecto destinado a recolher dejectos e
odores nada refinados fazem-se associações negativas, como na caricatura de
Alonso, no final do século XIX, em que o penico diz “política” e está cheio de
homens de casaca.
Mijar
fora do penico
“Como
se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico”, clamava o
jornalista e escritor Manuel António Pina numa das suas últimas entrevistas, em 2012. Falava de não
ser militante de qualquer partido e de ser desalinhado. É uma expressão que,
anos mais tarde, traria uma camada extra de humor ao próprio humor feito sobre
as eleições legislativas de 2015.
O
candidato António Marinho e Pinto, ex-bastonário dos advogados, deu uma
entrevista em que dizia aos jovens portugueses para “mijarem fora dos penicos”.
Durante a pré-campanha, o humorista Ricardo Araújo Pereira, na rubrica Isso
é tudo muito bonito, mas… da
TVI, pegou nas declarações para concluir: “Até que enfim que alguém expressa os
grandes valores políticos do séc. XXI: liberdade, igualdade e… chichi. Os
partidos são penicos e o voto é chichi. Urinar é um direito e um dever cívico.”
Num sketch, alguém faz que urina
em penicos com símbolos dos partidos no fundo. Um deles tem a imagem de Marinho
e Pinto. “Um ataque torpe e cobarde”, para Marinho e Pinto, que fez queixa à
ERC. Que não lhe deu razão - a rábula “parece fazer literalmente
jus ao desafio lançado pelo próprio queixoso aos jovens: ‘Mijem fora dos
penicos que vos põem à frente’”. O caso ficou por aí, mas o uso do penico como
arma de arremesso não.
Em
Coimbra, em 2001, numa manifestação em que os trabalhadores dos transportes
municipais se queixaram de não ter casas de banho nem sítio onde se fardar no
centro da cidade, lá estavam os penicos. Eram cor-de-rosa e foram notícia
porque o então presidente da autarquia, Manuel Machado, os mandou retirar por
estarem “achincalhar a dignidade” da reunião semanal do executivo camarário. A
questão da dignidade do penico acompanha-o sempre.
Havia penicos nas praxes académicas, como os que o
PÚBLICO via nas cabeças dos caloiros na
Cidade Universitária de Lisboa em 2008. Era avisado que quem não comprasse um
penico para enfiar na cabeça era “um caloiro abaixo de verme”, para risota
geral dos recém-chegados à universidade. Há penicos nas reportagens e crónicas
sobre Braga, cidade cuja pluviosidade profusa lhe merece a alcunha de
“penico dos céus” (outras cidades, como a beirã Viseu, também recebem a mesma
honra). Um capacete aberto para andar de mota, especialmente dos que se usavam
com uma pequena pala e abas de pele em cima de uma Famel ou de uma Zundapp é,
naturalmente, um penico.
O
penico é um objecto ingrato, tão útil quanto rejeitado. Se no século XVI eram
os escravos que carregavam com os penicos dos nobres e burgueses portugueses,
nem quando se inventou finalmente um sistema de escoamento com o que evoluiria
para ser um autoclismo, havia quem preferisse continuar a contar com o bom e
velho penico – nas mãos de outros, claro. Foi o caso dos britânicos Tudors, no
século XVI, que preferiam “ter um criado que trouxesse um penico até ao quarto”
ao invés de ter de caminhar até ao quarto de banho, como recorda a curadora dos
Palácios Reais Históricos, Lucy Worsley, na BBC. Anos mais tarde, é a vez de a
relação de Inglaterra com o penico ser revista em Portugal.
Foi
pela mão de Raphael Bordallo Pinheiro, ceramista e caricaturista, que reagiu ao
Ultimato de 1890, quando Inglaterra exigiu a Portugal que se retirasse de
certos territórios em África, como melhor sabia. Momento grave na relação dos
países aliados, gera a letra do actual hino nacional, A Portuguesa, e a queda de um
governo. E, numa oficina nas Caldas da Rainha, dá origem a uma nova versão de
John Bull, a conhecida representação de um inglês rico e amigo da comida e da
bebida criada no século XVIII. Bordallo Pinheiro acocora-o, faz de um braço uma
asa e do seu corpo o interior de um colorido penico – hoje peça de museu, até
invoca a figura de Donald Trump e é um dos penicos mais famosos do país.
O
penico John Bull é também a prova de que associar alguém ao penico raramente é
coisa boa. No Portugal dos anos 1990 resumia-se a febre do surf e daqueles que
a cavalgavam só por pose com a expressão “surfistas de banheira”. Mas os
Garotos Podres, banda do punk brasileiro, diziam tudo com um penico - era a
música do Surfista de Pinico (1993 ). “Pego a minha prancha/E
mostro a elas que existo/Eu sou/Um Surfista de penico/Mas eu preciso/É aprender
a nadar/Senão no meu penico/Eu sei que eu vou me afogar”. Nem todos podem ter a
leveza e humor da actriz portuguesa Daniela Ruah, estrela na televisão
americana, e que em 2017, quando fez 34 anos, publicou no Instagram, para o seu
quase milhão de seguidores, uma foto de infância bem disposta. “Sim, tenho
milho na mão. Sim, estou na casa de banho. Sim, tenho um penico na cabeça.”
Joana Amaral Cardoso
Interessantíssimo! Na minha terra, o Ceará, há uma expressão sobre o artefacto em questão, empregada quando se quer dizer que o facto, local ou comportamento já é deveras sabido: " ... é mais conhecido que arrastado de penico".
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