Por ocasião do falecimento em agosto de 2017 do nosso associado José Soares, o amigo e também associado da Aldraba Francisco Colaço dirigiu-lhe uma evocação que aqui reproduzimos (igualmente publicada no recente nº 23 da nossa revista):
NA HORA DA DESPEDIDA
DE UM VELHO AMIGO
Querido
amigo Zé Soares,
Apesar da distância que nos separa fisicamente, não queria
deixar de estar espiritualmente presente, junto dos teus entes queridos e
certamente muitos dos teus numerosos amigos, neste momento tão cruel e
inevitável da despedida. No adeus a uma vida tão bem preenchida que
atravessaste.
Foram 85 anos que por cá andaste. Parece uma eternidade para
um jovem, mas para quem chega a esta meta, parece pouco sobretudo para quem como
tu sentia tanta alegria em viver. Não sei se na proximidade desta hora, como
pessoa racional e frontal que te conheci, não fizeste esta reflexão: “José tu foste um privilegiado em relação ao
teu infeliz pai, que viveu apenas metade da tua idade, partindo precocemente
aos 43 anos, amargurado por deixar à sua sorte, em tempos tão difíceis, viúva e
5 órfãos, 3 dos quais ainda crianças. Tinha eu apenas 10 anos e apercebi-me
quanto foi duro para a minha pobre mãe ter de vergar-se ao peso de amassar
diariamente fornadas de pão para vender “para fora”, a fim de sustentar a
família. Enquanto eu, apesar de todas as dificuldades e contrariedades por que
passei, quer na infância, quer mais tarde quando vi partir prematuramente a
Bia, mãe dos meus 3 filhos, vivendo num país diferente do nosso que nos
acolhera, situação difícil que consegui superar graças ao amor e dedicação de
uma outra mulher extraordinária, Fátima, que foi uma 2ª mãe para os meus filhos
e ainda me deu mais uma filha. Portanto posso-me considerar um homem feliz,
parto com a consciência tranquila de dever cumprido, com a satisfação de deixar
os meus 4 filhos confortavelmente instalados na vida e os meus 8 netos com
futuro prometedor”.
Ligava-nos uma forte amizade de mais de meio século. Embora
eu fosse mais novo de uma dúzia de anos, ainda na adolescência comecei a
frequentar os mesmos espaços do Zé Centro Republicano, café do Manuel Guerreiro
e sobretudo a Livraria do Edmundo da Silva, local emblemático habitual de
convívio e de conspiração de oposicionistas ao regime totalitário que então nos
oprimia. Espaço que era preferencialmente vigiado pelos informadores da Pide,
anotando os frequentadores mais assíduos e as horas que ali permaneciam.
Entretanto, um acontecimento ocorrido em Aljustrel veio a marcar
profundamente as nossas vidas – 4 de dezembro de 1963, dia de Santa Bárbara,
Padroeira dos Mineiros. A PIDE sem qualquer pudor e respeito pela data que a
comunidade se preparava para festejar, inesperadamente, nessa madrugada, invade
a vila e os bairros mineiros prendendo 20 oposicionistas. Entre eles os
“habitués” Edmundo da Silva (6ª prisão), o tio do Zé João Eugénio (3ª prisão) e
o seu cunhado Francisco Rasquinho (2ª prisão). O medo que se apoderou da vila,
não foi impeditivo da nossa reunião habitual à noite no café, desta vez noutro,
pois o habitual não abrira, devido à prisão do seu proprietário Manuel
Guerreiro. Sob pretexto de uma partida de dominó, eu, o Zé, o seu irmão João e
o amigo José Alberto da Silva ali estávamos a desafiar os prováveis olhares
atentos de algum informador, murmurando em surdina a nossa revolta contra mais
esse acto repressivo sobre o povo laborioso e pacífico, mas insubmisso, da
nossa terra. Este episódio de cumplicidade veio sem dúvida cimentar a nossa
amizade. Estas prisões e os meses de angústia que se seguiram, tiveram no José
um efeito decisivo de partir para o exílio, o que veio a verificar-se em agosto
do ano seguinte. Eu como já estava decidido a partir, passado 2 meses
encontrava-me em Paris.
No exílio continuámos a cultivar a nossa amizade, num laço
que abrangia também a família Rasquinho, tendo como denominador comum, o amor e
a saudade à nossa terra natal e os mesmos ideais que partilhávamos.
Entretanto veio o 25 de Abril, movimento redentor, que
devolveu a Liberdade ao Povo Português e a esperança de viver num mundo melhor.
Regressei com a família a Aljustrel, integrando-me definitivamente na vida da
comunidade local. A nossa amizade nesta nova situação não deixou de se
reforçar, eu agora no papel de elo com a nossa terra. Ambos concebemos o
projecto de levar a renascida Filarmónica à Bélgica. Decorria o ano de 1979,
comemorava-se o Milenário da Cidade de Bruxelas, aproveitando um convite da
Filarmónica para se deslocar a Lyon o que facilitaria a sua deslocação a
Bruxelas, o Zé desenvolveu esforços e foi possível concretizar esse almejado
sonho. Concerto na majestosa Grand Place no quadro das referidas comemorações,
ao que se seguiu também outro concerto para a comunidade portuguesa no âmbito
dos Festejos do Dia de Portugal e ainda uma digressão às cidades francesas de
Hem e Roubaix, onde muitas famílias aljustrelenses viviam. Este também foi um
importante marco que consolidou a nossa amizade.
Os anos e as visitas mútuas, cá e lá, decorreram a um ritmo
alucinante. Entretanto, também fomos perdendo, inevitavelmente, familiares de
ambos os lados e amigos comuns, que tanta mágoa nos provocou. Até que há pouco
mais de um ano tocou o alarme para o amigo José: cirurgia, tratamentos e toda a
angústia que uma doença deste tipo acarreta para o paciente e família. Admirei
a tua coragem, pouco tempo após a cirurgia de teres vindo à nossa terra natal,
num acto simbólico de despedida. Pareceu-me que esse desafio representaria para
ti uma vitória sobre a doença. Infelizmente esse acto de coragem e manifestação
de esperança não foi suficiente para vencer o mal.
Durante este prolongado período de inquietação, de
sofrimento, fui mantendo contigo o diálogo possível, através de frequentes e
longas conversas telefónicas, procurando temas à volta da nossa terra, quer
pondo-te ao corrente do que aqui se passava ou estimulando as tuas tão ricas
memórias, desviando-te propositadamente o pensamento daquilo que te afligia.
Sei que para ti essas nossas cavaqueiras constituíam de certo modo um estímulo.
Para mim, perante a lucidez que sempre foste mantendo, criava-me a ilusão de
que tudo parecia normal, pois o interlocutor apenas se queixava da crescente
falta de força.
Da nossa derradeira conversa jamais esquecerei, o esforço
que tu fizeste para conseguir entoar a “Marcha de Aljustrel”, com letra de
Edmundo da Silva, estreada nas Festas da Vila de Aljustrel, realizadas pelo
Carnaval de 1936. Senti a alegria que manifestaste ao chegares ao fim dos
versos, sem balbuciar. E assim cantaste:
Haja alegria
e reinação
que a nossa festa
é um festão
E com ardor
vamos p’ra Praça
que lá se mostra
o valor da nossa raça
Esta nossa vila é
porreira
Dizer isto é que nos
compete
Não temos água p’ros
esgotos
Mas vão-nos dar uma
retrete.
Era este refrão, que o nosso saudoso amigo Manuel Fialho
costumava trautear quando se referia a Aljustrel, também seu sagrado berço. E
foi também com estes versos que tu te despediste de mim. Ironia do destino…
Um amigo é uma escolha que fazemos na vida e como seria bom
se fosse para toda a vida! Infelizmente, nesta corrida pela sobrevivência,
alguns ficam pelo caminho e quando se trata de alguém muito próximo, a dor que
sentimos não tem explicação.
Nesta hora tão penosa de despedida do meu amigo José, associo-me
à dor da sua companheira Fátima, dos filhos Filomena, Manuel, Paulo, Cecile e
dos netos Simon, Matilde, Maria, Sara, Emil, Louis, Tim e Claire, a quem
transmito as minhas mais sentidas condolências.
Francisco Palma Colaço
José Soares, um homem muito digno que nos deixou, mas a sua presença continuará na memória dos seus numerosos amigos, filhos, netos e bisnetos.
ResponderEliminarAo Francisco Colaço, felicitações sobre o excelente texto que escreveu sobre a vida do Zé.