segunda-feira, 14 de maio de 2018

A broa de milho
















Encontra-se no prelo, e vai começar a ser distribuído dentro de dias, o nº 23 da revista "Aldraba". Pré-publicação de um dos seus artigos:


A confeção tradicional da broa numa aldeia beirã

Revivendo as memórias da minha infância, recordo que a broa de milho era confecionada e cozida semanalmente em forno próprio ou cedido por um vizinho, num cenário de uma certa sacralidade, com rezas e bênçãos durante todo o seu processo
Sendo uma aldeia, como muitas outras, com uma economia familiar pobre, assente numa agricultura de sobrevivência, mas buscando alguma autossuficiência com trabalho e meios próprios, a troca de serviços com os vizinhos e recorrendo ao seu burrico, ora atrelado ao carro ora ao arado.
O pão na mesa era o resultado de mil canseiras, fazendo jus ao aforismo de “o pão que o diabo amassou”, pois era duro e longo o ciclo tradicional do pão: a preparação da terra, a sementeira, a rega, a recolha, a secagem na eira, a debulha da espiga, a moagem do milho e depois, sim, a broa. E ainda e sempre os imponderáveis do tempo… a chuva, o frio, o sol!
O grão deitado à terra em abril só em setembro frutificava. E “com quantos grãos um pão se fez?/Dez mil talvez/dez mil almas, dez mil calvários e agonias/Todos os dias…” (do poema “A Oração do Pão”, de Guerra Junqueiro).
Mas abordemos, sucintamente, a tradicional confeção da broa.
O processo começava, geralmente, na antevéspera com a moagem de um saco de milho, denominado de fole ou taleiga, no moinho de água da aldeia.
No dia do cozimento do pão, a farinha era peneirada para um recipiente retangular de madeira, a masseira. Adicionava-se-lhe o sal, o fermento (um pedaço de massa recolhido e guardado da fornada anterior) e a água necessários para a obtenção de uma amassadura macia, homogénea e consistente, depois de bem embolada pelas mãos da forneira durante cerca de meia hora. Com aquele saber fazer próprio e caseiro, transmitido ao longo dos anos.
Preparada a massa, esta era colocada num dos cantos da masseira, bem alisada com a mão, polvilhada com um punhado de farinha e coberta por uma manta, depois de feita no meio massa uma cruz, em baixo relevo, seguida da sacrossanta recomendação:
"S. Vicente te acrescente, 
S. Mamede te levede e 
S. João de ti faça pão
Ámen" 
(bênção recolhida de Maria do Carmo Henriques, mãe do autor deste artigo)
E a massa ficava a levedar durante cerca de duas horas. Entretanto, o forno era aquecido com lenha, anteriormente recolhida em hortas e pinhais.
Estando a massa levedada, ou finta, facto reconhecido pela abertura de lanhos na massa ou por um cheiro a levedo, era verificado o estado do forno; este só estaria bem aquecido quando as ombreiras da porta se apresentassem com uma cor esbranquiçada.
E vinham novas tarefas: a limpeza do forno com um rodo e um vassoiro, concentrando na soleira da porta os restos do braseiro; a divisão da massa em pedaços, equivalendo a 8 ou 10 broas por fornada; o baquear da broa (enformar a broa). Colocada a massa numa tijeloa (malga em porcelana com um formato apropriado), era vê-la a saltar e a rolar até que ficasse redondinha e ser virada na pá – peça com cabo de madeira e chapa ferro - para ir ao forno, com mais uma bênção:
“Cresça o pão no forno,
Ele a crescer
E nós a comer
Reze quem puder e souber”
Um trabalho feito por duas pessoas, geralmente mulheres.

Uma hora depois, as broas já estavam cozidas e eram retiradas do forno, pairando, então, no ar aromas a pão cozido, que jamais esqueceremos.
As broas eram depois guardadas em lugar fresco, geralmente na loja da casa.
E as fornadas – forno completo com broas – sucediam-se semanalmente, seguindo os mesmos processos e ritos.
Hoje a realidade é bem outra face ao surgimento das novas tecnologias, aplicadas também na panificação. O pão chega-nos diariamente a casa trazido pelo padeiro ou adquirido em qualquer estabelecimento comercial. Na aldeia e na cidade.
Porém, para que tais saberes e práticas sejam ainda vivenciados, lá vão acontecendo, nas aldeias, revisitações ao passado com a confeção da broa em antigos fornos ainda existentes, para gáudio dos seus naturais e, até, de forasteiros, como sucedeu no XVI Encontro da Associação Aldraba em Mosteiro, Pedrógão Grande, em que o milho fora moído tradicionalmente, em moinho de água local, alvo de obras de recuperação.
Realmente, o pão faz parte da história de qualquer comunidade ou povo, constituindo um dos alimentos centrais da sua alimentação.
Daí a sua veneração e sacralização. Ontem, como hoje.
João Coelho

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