Encontra-se no prelo, e vai começar a ser distribuído dentro de dias, o nº 23 da revista "Aldraba". Pré-publicação de um dos seus artigos:
A confeção tradicional da broa numa aldeia beirã
Revivendo as memórias da minha infância,
recordo que a broa de milho era confecionada e cozida semanalmente em forno
próprio ou cedido por um vizinho, num cenário de uma certa sacralidade, com
rezas e bênçãos durante todo o seu processo
Sendo uma aldeia, como muitas outras, com
uma economia familiar pobre, assente numa agricultura de sobrevivência, mas
buscando alguma autossuficiência com trabalho e meios próprios, a troca de
serviços com os vizinhos e recorrendo ao seu burrico, ora atrelado ao carro ora
ao arado.
O pão na mesa era o resultado de mil
canseiras, fazendo jus ao aforismo de “o pão que o diabo amassou”, pois era
duro e longo o ciclo tradicional do pão: a preparação da terra, a sementeira, a
rega, a recolha, a secagem na eira, a debulha da espiga, a moagem do milho e
depois, sim, a broa. E ainda e sempre os imponderáveis do tempo… a chuva, o
frio, o sol!
O grão deitado à terra em abril só em
setembro frutificava. E “com quantos grãos um pão se fez?/Dez mil talvez/dez
mil almas, dez mil calvários e agonias/Todos os dias…” ( do poema “A Oração do Pão”, de Guerra Junqueiro).
Mas abordemos, sucintamente, a
tradicional confeção da broa.
O processo começava, geralmente, na
antevéspera com a moagem de um saco de milho, denominado de fole ou taleiga, no
moinho de água da aldeia.
No dia do cozimento do pão, a farinha era
peneirada para um recipiente retangular de madeira, a masseira.
Adicionava-se-lhe o sal, o fermento (um pedaço de massa recolhido e guardado da fornada anterior) e a
água necessários para a obtenção de uma amassadura macia, homogénea e
consistente, depois de bem embolada pelas mãos da forneira durante cerca de
meia hora. Com aquele saber fazer próprio e caseiro, transmitido ao longo dos
anos.
Preparada a massa, esta era colocada num
dos cantos da masseira, bem alisada com a mão, polvilhada com um punhado de
farinha e coberta por uma manta, depois de feita no meio massa uma cruz, em
baixo relevo, seguida da sacrossanta recomendação:
"S. Vicente te
acrescente,
S. Mamede te levede e
S. João de ti faça pão
S. Mamede te levede e
S. João de ti faça pão
Ámen"
(bênção recolhida de Maria do Carmo Henriques, mãe do autor deste artigo)
E a massa ficava a levedar durante cerca
de duas horas. Entretanto, o forno era aquecido com lenha, anteriormente recolhida
em hortas e pinhais.
Estando a massa levedada, ou finta, facto
reconhecido pela abertura de lanhos na massa ou por um cheiro a levedo, era verificado o estado do forno; este só estaria bem
aquecido quando as ombreiras da porta se apresentassem com uma cor
esbranquiçada.
E vinham novas tarefas: a limpeza do
forno com um rodo e um vassoiro, concentrando na soleira da porta os restos do
braseiro; a divisão da massa em pedaços, equivalendo a 8 ou 10 broas por
fornada; o baquear da broa (enformar a broa).
Colocada a massa numa tijeloa (malga em porcelana com um formato apropriado), era vê-la
a saltar e a rolar até que ficasse redondinha e ser virada na pá – peça com
cabo de madeira e chapa ferro - para ir ao forno, com mais uma bênção:
“Cresça o pão no forno,
Ele a crescer
E nós a comer
Reze
quem puder e souber”
Um trabalho feito por
duas pessoas, geralmente mulheres.
Uma hora depois, as broas já estavam
cozidas e eram retiradas do forno, pairando, então, no ar aromas a pão cozido,
que jamais esqueceremos.
As broas eram depois guardadas em lugar
fresco, geralmente na loja da casa.
E as fornadas – forno completo com broas
– sucediam-se semanalmente, seguindo os mesmos processos e ritos.
Hoje a realidade é bem outra face ao
surgimento das novas tecnologias, aplicadas também na panificação. O pão
chega-nos diariamente a casa trazido pelo padeiro ou adquirido em qualquer
estabelecimento comercial. Na aldeia e na cidade.
Porém, para que tais saberes e práticas
sejam ainda vivenciados, lá vão acontecendo, nas aldeias, revisitações ao
passado com a confeção da broa em antigos fornos ainda existentes, para gáudio dos
seus naturais e, até, de forasteiros, como sucedeu no XVI Encontro da
Associação Aldraba em Mosteiro, Pedrógão Grande, em que o milho fora moído
tradicionalmente, em moinho de água local, alvo de obras de recuperação.
Realmente, o pão faz parte da história de
qualquer comunidade ou povo, constituindo um dos
alimentos centrais da sua alimentação.
Daí a sua veneração e sacralização.
Ontem, como hoje.
João Coelho
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