Pré-publicação do artigo que vai sair no nº 15 da revista "ALDRABA", atualmente no prelo. Jaime Gralheiro é, há 45 anos (!), amigo de elementos da atual Direção da associação Aldraba. Tendo presentemente 83 anos, o Jaime nasceu na serra do S. Macário, em Macieira, freguesia de Sul, no concelho de S. Pedro do Sul. Homem de convicções, gosta de fazer teatro, ler e viajar. Foi pastor de ovelhas e de cabras. Quando chegou à escola já tinha 9 anos. Licenciou-se em Direito. Antes de descobrir a profissão, descobriu a poética das letras e o engenho das palavras. Deu em advogado, em dramaturgo e em escritor: três atividades para as quais a palavra é muito importante. Do menino das ovelhas e das cabras ficou a sua solidariedade para com os mais desfavorecidos.
Toda a arte e todo o saber têm duas vias: a via popular e a erudita.
A via popular é, ao fim e ao cabo, a sublimação artística do trabalho e das vivências quotidianas de um povo, enquanto que o saber é acumulação histórica das várias experiências vitais desse mesmo povo, constituindo, tudo, o seu verdadeiro património cultural ou folclore.
A via erudita da arte popular é a reflexão aprofundada feita sobre a arte e os saberes populares, procurando descobrir nestes a expressão universal das raízes que os animam.
Ao lado desta arte e destes saberes há outras formas fechadas, de caráter elitista e que pouco ou nada têm a ver com as profundas aspirações do povo em geral.
Existe em S. Pedro do Sul, desde 1971, um grupo de teatro popular, fundado por Jaime Gralheiro, José de Oliveira Barata e Manuela Cruzeiro.
Este grupo, com a designação de Cénico – Grupo de Teatro Popular de S. Pedro do Sul, fez, ao longo de 30 anos, desde a sua fundação até 2010, um teatro exigente, do ponto de vista da sua criação e feitura, mas profundamente ligado aos interesses culturais das populações onde se inseria (S. Pedro do Sul e toda a Região de Lafões) e, mesmo, de todo o país.
O seu primeiro espetáculo (O Auto da Compadecida de Areano Suassuna), com encenação de José de Oliveira Barata e de Jaime Gralheiro, foi apresentado em 1971, encostado a um grupo de futebol local (União Desportiva São-pedrense) e como sua secção cultural.
Este espetáculo causou tal escândalo nos meios clericais e da direita assanhada que as autoridades policiais logo o proibiram após sete apresentações, com o argumento de que os estatutos da União Desportiva São-pedrense não previam a criação de uma secção cultural…
Depois de muitos esforços e fintas, o Cénico da “União Desportiva São-pedrense” conseguiu que os seus estatutos fossem aprovados pelo Governo Civil do distrito de Viseu, em Setembro de 1972, com a designação atual de Cénico - Grupo de Teatro Popular de S. Pedro do Sul.
Já devidamente legalizado, o Cénico apresentou na temporada 1972/73, com encenação dos mesmos responsáveis, o seu segundo espetáculo: A Sapateira Prodigiosa de Federico Garcia Lorca, com um prólogo de Jaime Gralheiro. Com o argumento de que este prólogo não fora submetido à Censura ou Exame Prévio, o espetáculo foi todo proibido, após sete representações.
Esta transgressão acarretou para o Grupo um processo judicial de que veio a ser absolvido, por o juiz considerar que o tal “prólogo” mais não era do que a representação do programa distribuído pelos espetadores e que fora devidamente aprovado...
Procurando fugir a este “mau-olhado” das sete representações, o Cénico decidiu apresentar na temporada de 73/74 um texto fora de qualquer suspeita, escrito pelo dramaturgo e encenador Jaime Gralheiro, Na Barca com Mestre Gil, que mais não era do que uma seleção de textos interligados de Gil Vicente, patrono do Teatro Português.
Quando o espetáculo estava em ensaios, o texto foi remetido para a Censura ou Exame Prévio que o aprovou na íntegra, com o corte de algumas passagens mais brejeiras de Gil Vicente.
Esta aprovação deixou-nos a todos muito satisfeitos, pois todos nós bem sabíamos que o texto final, embora baseado em Gil Vicente, era uma recreação de Jaime Gralheiro com grande carga de atualidade disfarçada nas “curvas” do texto vicentino…
Esta alegria durou pouco tempo, pois, passado alguns dias (em Março de 1974), quando o espetáculo estava já em ensaios de apuro, foi o Cénico notificado de que, não só o texto, mas todo o espetáculo eram totalmente proibidos.
O Grupo recebeu muito mal esta proibição, tendo recorrido da mesma para as instâncias superiores, sendo tal recurso acompanhado pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Entretanto, os ensaios continuaram com todo o grupo inteiramente unido à volta da sua direção artística. Esta rebeldia provocou uma forte irritação dentro das estruturas policiais de então (PIDE/DGS) que passou a seguir os ensaios de uma forma escondida e clandestina, fazendo, ao mesmo tempo, ameaças e pressões juntos dos atores e atrizes que eram funcionários público e municipais.
Felizmente, no mês seguinte, aconteceu o 25 de Abril, tendo todas as proibições e ameaças caducado, e sendo o espetáculo apresentado, livremente, em plena euforia revolucionária.
Mais tarde, ao lado de Fulgor e Morte de Joaquim Murieta de Pablo Neruda, montado pelo Grupo de Campolide, excertos de Na Barca com Mestre Gil integraram, modesta e revolucionariamente, as Campanhas de Dinamização do MFA no distrito de Viseu.
Depois de Abril de 74, o Cénico apresentou, sob direção do seu autor, o espetáculo Arraia Miúda, ensaiado por dezenas de jovens, em situações extremas (numa eira para onde dava um curral de vacas que, de vez enquando, “atravessavam o palco” e obrigavam à suspensão dos ensaios!). Este espetáculo foi visto por muitos milhares de pessoas, em todo o distrito de Viseu, estendendo-se por todo o país, desde Amarante, a norte, até Évora, a sul, passando pelo Porto, Lisboa e Setúbal e outras cidades e vilas.
Tal espetáculo teve a sua grande apoteose numa apresentação que fez em Abril de 77, no Teatro Virgínea, de Torres Novas, com a presença de Vasco Gonçalves a quem a peça fora dedicada pelo autor. A casa estava à cunha e, inesperadamente, durante a representação, houve uma explosão revolucionária vinda do público que tomou conta do espetáculo e obrigou os próprios atores a suspenderem a representação, deixando que esta passasse para o mesmo público, durante vários momentos.
Terá sido uma experiência única não só para os elementos do Cénico, como para todo o público onde havia gente farta de ver teatro por esse mundo a cabo…
Em 1978/79, o Cénico apresentou O Homem da Bicicleta, que era a dramatização feita por Jaime Gralheiro do romance de Manuel Tiago Até amanhã, camaradas. Com esta representação, o Cénico pôs em cena cerca de 40 atores e atrizes, tendo sido o último espetáculo revolucionário do Grupo.
Na temporada de 78/79, montou um espetáculo infanto-juvenil com texto e encenação de Jaime Gralheiro, “D. Beltrão de Rebordão”. Em 1980, apresentou A Grande Jogada de José Viana.
A partir deste espetáculo, começaram, para o Cénico e para a sociedade portuguesa, anos de refluxo. Os atores e atrizes do Cénico tiveram de emigrar, pois os patrões de S. Pedro do Sul não lhes davam trabalho por terem pertencido ao Cénico.
Procurando manter alguma atividade e dado não ter atores e atrizes adultos, o grupo virou-se para o teatro infantil, tendo montado, em 1985, Viva o Lobo Mau de Carlos Rodrigues, e Farruncha de Jaime Gralheiro.
Só nos anos 90, com nova gente e alguns poucos que resistiram da primeira fase, o Cénico montou: Lafões é um Jardim (revista) (1990/91) e Onde Vaz, Luiz? (1991/92) ambos com texto de Jaime Gralheiro; Era uma Vez um Coração, ainda de Jaime Gralheiro, sobre texto de Polybio Serra e Silva (Cénico/Infantil, 1992/93); Tartufo de Molière/Llovet (1993/94); Viva o Lobo Mau e Farruncha (Cénico/Infantil, 1994/95); É (h) Meu! de Jaime Gralheiro (Cénico/Juvenil, 1995/96); O Canto da Terra com o Grupo de Cantares de Manhouce e Rancho de Manhouce (1995); Vem aí o Zé das Moscas de António Torrado (Cénico/Infantil,1997/98); Na Barca com Mestre Gil (2ª versão) (Cénico/Adultos, 1997/98); Graças e Desgraças de el-Rei Tadinho de Alice Vieira (Cénico/Infantil, 2001/2) e nova montagem de O Auto da Compadecida de Areano Suassuna (Cénico/Adultos, 2001/2) e João e Guida de Ilse Losa (Cénico/ Infantil, 2002/2003); Médico à Força de Molière (Cénico/Adultos, 2003/2004); Dantas e Dantas, Almada & Cia” de Júlio Dantas e Almada Negreiros (Cénico/Adultos 2005/2006); e O Bem Amado de Dias Gomes, (Cénico/Adultos, 2009/2010).
Após este espetáculo, que foi um êxito artístico e de bilheteira, a direção do grupo, que fora tomada por gente pertencente a forças políticas desalinhadas da linha tradicional do Cénico, sem aviso nem explicações, afastou o fundador e encenador tradicional do grupo, montando um espetáculo, meio clandestino, e para a estreia do qual nem o antigo diretor e encenador convidou. Este espetáculo nada tinha a ver com a tradição estética do Cénico e foi um falhanço.
A partir daí, Jaime Gralheiro afastou-se do grupo que, após a exibição do seu espetáculo de rutura, deixou de ter qualquer atividade artística e teatral, passando a hibernar.
Entretanto o teatro popular que o Cénico fazia continuou a fazer-se, agora, na Universidade Sénior de S. Pedro do Sul que convidou Jaime Gralheiro para a direção da sua disciplina de Teatro e que apresentou na linha do velho Cénico, na temporada de 2012/2013, o espetáculo N´Arca Barca de Gil e Jaime, onde sobressaiu a nova peça de Jaime Gralheiro, O Levantamento de Arcozelo (evocação do motim popular histórico acontecido em Arcozelo de S. Pedro do Sul, em 1635, e foi um ato preparatória da Revolução de 1640). Prepara para este ano uma súmula feita pelo próprio autor da sua peça Arraia míúda a qual, se espera, será estreada no próximo dia 25 de Abril.
O teatro é uma escola onde se afina e aprofunda a sensibilidade estética de quem o faz e de quem a ele assiste, ao mesmo tempo que o sentido crítico de uns e de outros é refinado, por via de uma leitura mais aprofundada dos factos que estão na base da representação (espetáculo).
Este é o teatro popular que se faz em S. Pedro do Sul e por estas terras da Beira.
Jaime Gralheiro
Por favor aumentem a letra...eu que sou míope tenho dificuldade em ler - cansa a vista - e por isso, peço-vos que mudem a letra, de forma a todos poderem ler, além do título. Obrigado.
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