Pré-publicação do artigo desta associada da ALDRABA, que vai sair no nº 15 da nossa revista, atualmente no prelo.
A taberna era por excelência ponto de encontro, espaço de conversa, de discussão de ideias, de partilha de histórias e vivências diárias e, não poucas vezes, de transmissão de preocupações e sentimentos que os homens, habitualmente, expressavam em décimas. O convívio, neste lugar, tinha como companheiros indissociáveis o petisco e o copinho de vinho e, necessariamente, a expressão maior do ser alentejano – o cante.
No Museu da Ruralidade – núcleo de oralidade, Rua de Santa Madalena, em Entradas, Concelho de Castro Verde, existe uma extraordinária recriação de um destes espaços que, todavia, não é uma recriação por si só. É um lugar vivo, onde se recebem, generosamente, as pessoas e se desenvolvem encontros, conversas, tertúlias, convívios, colóquios. É um lugar onde, sentados nos banquinhos de madeira, petiscando um queijinho de ovelha ou umas rodelas de paio, à volta das mesas de tampos de pedra ou encostados ao balcão, podemos ouvir contar histórias, conversar sobre a Feira de Castro, ouvir falar de trabalho e luta mineira, assistir aos ensaios dos vários grupos de cante do Concelho, observar o Grupo da Meia a retomar o entrelaçado antigo da linha, tecendo com cinco agulhas meias de algodão e modas de outros tempos. Ouvem-se, as vozes na taberna.
Mas o Museu também é feito de outras vozes – a dos objectos expostos e das histórias de vida que eles contam. Este feliz projecto da Câmara Municipal de Castro Verde tomou forma pelas mãos de Miguel Rego e Manuel Passinhas o que, por si só, é garantia de sucesso. A dedicação às terras do sul e a preocupação pela preservação da memória e salvaguarda do património cultural, ficaram bem patentes em projectos anteriores como o Museu do Contrabando, em Santana de Cambas ou a Casa do Mineiro, na Mina de São Domingos.
Bem concebido, luminoso e bonito - como as coisas simples, o espaço museológico reparte-se por quatro salas, uma loja, uma sala de projecção, um centro de documentação, a taberna e, na continuidade do átrio de entrada, um solarengo pátio adornado por um limoeiro, duas laranjeiras e três tradicionais talhas que, muitas vezes, serve de palco para ensaios e apresentações dos grupos corais ou para a sonoridade única das violas da terra campaniça se fazer ouvir.
Desde a sua inauguração, em 29 de Julho de 2011, que mantém em três das suas salas uma exposição permanente denominada “Máquinas, Objectos e Memórias da Ruralidade”. Trata-se de um vasto conjunto de peças que falam das terras e das gentes campaniças, das suas actividades e dos seus modos de vida.
Podem observar-se a forja do último mestre ferreiro, a oficina do abegão, arados, trilhos, tararas, debulhadoras, equipamentos e alfaias agrícolas que, não obstante, serem afastados dos campos pela mecanização da agricultura, subsistiram para narrar processos de cultivo, formas de vida, histórias pessoais e colectivas.
Doadas pelos naturais daquela região, o que demonstra a apropriação e a valorização do espaço pelos residentes, as peças foram cuidadosamente identificadas e “explicadas” com recurso a grandes painéis que embelezam as paredes e contêm informação sobre a peça - a sua função, o contexto da sua utilização, a sua história e, mais do que isso, o nome e a ampliação da foto de quem a ofereceu.
A identidade e a história dos objectos estão, inevitavelmente, ligadas às pessoas que tinham na dureza do trabalho no campo a sua forma de vida e essa ligação é reconhecida e transmitida, de forma especial e muito efectiva, aos visitantes da exposição. A memória da ruralidade é também recuperada “em ponto pequeno” com os trabalhos em miniatura do artesão Manuel Conceição Silva que com madeira, cortiça e pequenas chapas metálicas, constrói objectos, instrumentos de trabalho e alfaias agrícolas.
Pelo Museu da Ruralidade, no espaço dedicado às exposições temporárias, passaram também outros conteúdos expositivos, outras vozes que projectam as marcas identitárias daquela região - a exposição de violas campaniças e as fotos e painéis representando a ambiência, da que foi uma das mais importantes feiras do sul, a Feira de Castro.
Relembrar outras actividades económicas que caracterizaram o território e moldaram vivências sociais foram duas preocupações que serviram de pretexto para se fazerem ouvir as vozes dos mineiros na significativa exposição "Memórias de uma Mina - Rossio de S. Sebastião (Castro Verde)" que esteve patente entre 13 de Setembro de 2012 e 31 de Janeiro de 2013.
O contexto foi dado pelos elementos que revelaram a história da mineração com as suas figuras principais e pela explicação da importância económica assumida pela actividade mineira e pelo minério - barite ou barita, extraído naquela mina durante mais de sessenta anos, dos noventa e nove que durou a actividade na mina. A exploração conheceu o seu fim em 1962/63.
Contudo, a exposição ganhou a sua maior expressão no testemunho dos trabalhadores que foram protagonistas da severa realidade do trabalho mineiro, jovens que começaram a trabalhar na mina com 11, 12 ou 13 anos. Foi através das suas memórias e dos seus testemunhos que se contaram outras histórias - as de vida - que se projectaram na história daquela comunidade que sofreu na pele a pobreza e a exploração dos duros anos dos meados do século XX. Alguns destes mineiros estiveram presentes, para contar a história, ao vivo, em 8 de Dezembro de 2012, no Colóquio que aconteceu no espaço da taberna do Museu e que se denominou “Cultura e Luta Mineira em Portugal e Espanha”.
Retrato dessa época foi também a exposição, patente entre 20 de Abril e 30 de Setembro de 2013, “Maria Linda: Uma Mulher Alentejana em meados do século XX” que teve como pano de fundo um conto da Maria Rosa Colaço, publicado em Março de 1958, no nº 141 do Mensário das Casas do Povo.
A partir do texto e de um conjunto de objectos “vestuário, loiças, revistas, mobiliário” oferecidos ao Museu, invoca-se a mulher alentejana dos anos 50, contando a história de uma jovem alentejana que concentra a sua perspectiva de vida nos limites da sua terra e na realidade que conhece. A exposição constituiu uma narrativa da época em que o papel social da mulher era reduzido às actividades domésticas, ao cuidar dos filhos e à obediência à figura masculina do chefe de família.
As profissões desaparecidas é a temática que serve de mote à exposição que inaugurou em 14 de Fevereiro deste ano e está patente até 4 de Fevereiro de 2015, sobre o último caldeireiro de Castro Verde: “O Caldeireiro – A propósito de Carlos Lobo – Objectos de uma profissão desaparecida”.
Os instrumentos expostos e a sua disposição, complementados pelas imagens do filme projectado na tela existente, desvenda-nos o trabalhoso processo de criar utensílios, de uso doméstico, em cobre. A equipa do Museu e alguns jovens colaboradores deram vida aos objectos oferecidos pela filha do autor, Helena Lobo. Contaram e continuam a contar, pelo menos até final da exposição, a história das peças e da vida de um artífice do cobre através de um bela exposição da sua arte.
Valoroso contributo este para o conhecimento dos objectos e processos de produção já em desuso, mas que foram actividades importantes e foram, essencialmente, modos de sobrevivência das pessoas que fizeram e fazem a história do lugar.
O Museu da Ruralidade integra, desde 14 de Fevereiro de 2014, o Núcleo A Minha Escola.
Quem conheceu os bancos da escola primária nos anos 50 e 60 do último século contempla, certamente, com alguma surpresa e admiração e, especialmente, com a mente povoada de memórias, a sala de aula de uma pequena escola em Almeirim, Concelho de Castro Verde.
Pretende-se mostrar com a recuperação deste espaço como era uma sala de aula. Encontram-se ali, por exemplo, as carteiras em madeira com os tinteiros colocados, o quadro grande de ardósia, os mapas de um Portugal distendido e colonizador, os livros e cadernos de ditados com zero erros e redacções sobre a Primavera, dos alunos de 1959 mas, quando fixamos a sobrelevada secretária da professora os olhos põem-se, inevitavelmente, na inesquecível menina dos cinco olhos–a palmatória. Recuperam-se, certamente, algumas memórias…
Brilhante trabalho de estudo, recolha e preservação dos objectos e do espaço.
Muitas considerações, desenvolvimentos e discussões, com discursos de maior ou menor grau académico, se poderiam apresentar sobre o Museu da Ruralidade, alimentando-se o debate sobre projectos museológicos, funções mais ou menos sociais, novas ou velhas museologias. O tema mereceria, com certeza, trabalho de maior fôlego, em sede própria.
Neste contexto cabe dizer que o Museu da Ruralidade – núcleo de oralidade alia os objectos aos testemunhos que fazem a história e o património cultural material/imaterial do concelho de Castro Verde.
É um espaço de intervenção que prima pela metodologia participativa, pela dinâmica que estabelece com os residentes mas, sobretudo, pelo valoroso trabalho de dinamização e preservação da memória.
É um Museu do território, inserido no seu espaço, que fala, naturalmente, da terra mas, essencialmente, das pessoas e para as pessoas. Há sempre mais um objecto que chega ao Museu, mais uma ideia para exposição, mais uma participação, mais uma memória que é revivida e contada, mais uma voz a fazer-se ouvir.
Assim se guarda o património e a identidade locais e se valoriza a memória colectiva de uma comunidade.
Ana Isabel Carvalho
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