Como já anunciámos, o n.º 32 da nossa revista está composto, e sairá dentro de dias da tipografia. Divulgamos hoje, depois da pré-publicação do editorial, um trabalho da nossa associada Isaura Reis, do concelho do Fundão, que vai sair neste número da revista:
CARVALHAL – BALDIO DO POVO DO SOUTO DA CASA
Mesmo
antes de Portugal ser nação, existem referências acerca da existência de áreas
de terreno incultas que as populações de uma determinada comunidade usavam –
por direito formado pelos usos e costumes, defendido pela luta popular – para
pastar os gados, recolher lenha, colocar colmeias, produzir ou apenas recolher
cogumelos, numa infindável gama de tarefas que complementavam ou garantiam o
rendimento dos vários elementos de uma comunidade.
Eram os baldios de que os povos usufruíam para minorar a sua quase-escravidão. Presentes em muitas freguesias serranas, os baldios constituíram a base da vida dos rurais e das suas famílias.
Mas poderá perguntar-se por que razão os grandes senhores da terra permitiam a existência destes baldios? A resposta é simples: “para poderem continuar a pagar magríssimas jornas e para manterem condições de quase escravatura nos foros e outras formas de «arrendamento rural»”. De facto, os grandes proprietários toleraram que os povos complementassem os seus parcos rendimentos com o usufruto dos baldios, ainda que esse seu interesse fosse contraditório com o desejo de alargar as suas propriedades. E, por isso, em várias situações se apropriaram de largas parcelas desses baldios, processo em que sempre contaram com o apoio do poder e a resistência das populações.
A história da evolução dos baldios é, assim, feita da “luta entre as populações que reclamavam o direito ao seu uso e o defendiam com as forças que tinham, e o poder que, cedendo amiúde aos interesses da nobreza ou da burguesia rural, ia alienando milhares de hectares baldios, em prejuízo das primeiras”. As populações perderam pastos para milhares de cabeças de gado, estrumes para as suas terras, lenhas para se aquecerem, meios de sustento. Mas não foi sem resistência que este processo se desenrolou.
O caso que aqui se traz é o do Baldio do Souto da Casa, o Carvalhal, em plena Serra da Gardunha. Retomando o ano de 1615, encontramos registo de que no lugar do Souto da Casa «há um Carvalhal que serve de moita, souto, mato e lenha, para abegoaria e também serve de malhada da boiada e das coimas que se fazem nele tem el rei uma parte e o concelho outra e os coimeiros outra, o qual terá em cumprido e largo meia légua, e parte de uma banda com São Vicente da Beira e com o termo de Castelo Novo». Ora, este chão de cerca de 600 hectares, fruído pelo povo do Souto da Casa, sempre foi alvo de muita cobiça por parte dos senhores absolutos.
Em 1793, o povo viu-se obrigado a defender a sua antiga posse, foro e uso. Na petição à rainha D Maria I, é dito pelo procurador do povo que «tendo comprado há mais de 400 anos uma grande mata com perfeita comunhão e liberdade geral para todos ali cortarem lenhas, madeiras e pascentarem seus gados, sem que ao concelho municipal pertença algum acto ou consequência de domínio ou posse», se possa intrometer ou perturbar o seu uso comunitário. Face aos fundamentos da argumentação e depois de muita inquirição, a petição do povo foi deferida.
Porém, vencida esta contenda, outra se seguiu no ano de 1890.
Diz a história que, no baldio do Carvalhal, a família Garrett explorava as pastagens, a Irmandade do Santíssimo as castanhas, e o povo detinha o cultivo da terra. Mas, certo dia, o rico proprietário incumbiu o seu feitor, António Antunes Àquem, de ocupar todos os terrenos e não deixar que o povo os cultivasse. Então, os sinos tocaram a rebate, o povo juntou se, subiu à serra, lutou e venceu.
No dia 12 de Fevereiro de 1890, com muitos tiros à mistura, tumultos e sinos a rebate, o povo juntou-se dirigindo-se ao Carvalhal, e aí fizeram ver ao feitor que a terra pertencia a quem a amanhava e nunca à Casa Garrett. Enraivecido com a ousadia do povo e dado por não satisfeito, o feitor voltou ao Carvalhal no dia 26, acompanhado de testemunhas legais com o objetivo de intimidar o povo com a justiça e a força. Acontece que, enquanto isto, um popular, em correria acelerada, veio à aldeia avisar do sucedido e os ânimos exaltaram-se quando, pela segunda vez, o sino tocou a rebate.
Com palavras de ordem e determinados, obrigaram o feitor a cortar um reboleiro e carregar com ele às costas até ao povoado. Foram 4 quilómetros em que o povo inquiria: de quem é o Carvalhal? O feitor respondia: é do senhor Garrett. O povo não queria tal resposta e em nada aliviava o carrego que o feitor transportava. Novamente inquirido, acabou por responder: O Carvalhal é vosso! Mas o povo retorquia: Nada disso! É então, já dentro da povoação, que o povo volta a inquirir: De quem é o Carvalhal? E o feitor, vencido, respondeu: É nosso!
Passaram 132 anos, já não se repartem as glebas, mas em todas as manhãs de Quarta-Feira de Cinzas é lançado um foguete e o povo do Souto da Casa sobe à serra para renovar a memória, fazer a festa e gritar: De quem é o Carvalhal? É nosso!
Isaura Reis
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