quinta-feira, 19 de março de 2020

Viver em família antes do 25 de abril


















Retratar a família é olhar para dentro, para um certo recanto resguardado da sociedade. Na modernidade, consideramo-lo privado, um domínio que se fecha à vida pública e afirma a sua autonomia. Encontramos na vida familiar, em ponto pequeno, o rasto das relações de poder e das desigualdades, o impacto dos contextos e do tempo. Inversamente, a família participa na construção da mudança: protagonistas, dinâmicas e valores moldam o tecido social.

Nas décadas aqui retratadas*, a família mantém traços comuns. Num país pobre, rural, católico e analfabeto, o modelo que predomina em vastos setores da população é o da família como grupo de trabalho para a sobrevivência económica. As crianças não disfrutam de uma infância, como hoje a entendemos: a maioria nunca andou na escola. São braços para o trabalho familiar, adultos em miniatura. A ordem moral, imposta pela Ditadura, estabelece uma hierarquia entre homem (o chefe, protetor e provedor da família) e mulher (subalterna, dependente da autoridade masculina, enaltecida no seu papel doméstico e de mãe). Vive-se sob o signo de um trilho moral único virtuoso, onde o bem e o mal, o lícito e o ilícito se distinguem com nitidez.

A investigação científica (e estas fotografias) revela como esse modelo destoa de muitas formas de viver em família no Portugal dessas décadas e mostra como o panorama se altera significativamente nos anos 1960: os movimentos migratórios, as frestas que se abrem a novos valores vindos da Europa, e a Guerra Colonial, que mobilizaa os homens mas deixa as mulheres na Metrópole à frente das famílias, vêm "desarrumar" o espaço que parecia tão avesso à mudança. O 25 de abril encarregar-se-á de a colocar em movimento de vertiginosa aceleração.

Ana Nunes de Almeida e Karin Wall, in "Memória de Portugal - dois séculos de fotografia", Atlântico Press, Lisboa, 2020

Fotografia: Arquivo Aliança de Braga, Museu da Imagem - "Cabreiros, Braga, 1910. Trajados como manda a tradição minhota, exibindo as suas jóias, as famílias abastadas assinalavam os dias festivos com uma fotografia de estudio para a posteridade"


* 1900-1970

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