segunda-feira, 4 de julho de 2005

Museu da Luz: Uma Opinião


Pode ter uma arquitectura soberba, pode mostrar objectos interessantes, mas onde estão as pessoas? Num vídeo realizado na aldeia antiga, que revela imagens belíssimas, recolhidas no barbeiro, numa procissão, durante a matança do porco?
O que há é um vazio, a sensação de estarmos num armazém de utensilagem de uma comunidade fantasma, da qual se apagou a energia vital, a essência.
Da Rita Maria, ou Rita Batata, que morreu há pouco nonagenária e que era viúva de um abegão, o que ficou? E do Poeta João Chilrito Farias, felizmente ainda vivo? Não há um verso dele sequer no catálogo...
Os iluminados que encomendaram este trabalho pensarão que a poesia de raíz tradiconal é uma arte menor? Os funcionários que recolheram os objectos tiveram consciência que o seu afã ia servir para um esquema de apagamento da respiração de uma comunidade, sob a capa da evocação?
Exceptuando o aspecto arquitectónico, existem no nosso país vários exemplos de recolhas etnográficas sobre o mundo rural, que se vão repetindo, como em Serpa, no edifício do antigo mercado ou no Centro Cultural raiano, só para lembrar dois casos.
No Museu da Luz, porém, falta a contextualização. É uma exibição de fantasmas.
Não deve ter sido por acaso que me contaram que um habitante tentou entregar no museu uma fotografia sua para juntar ao objecto que cedera para a exposição. O autarca local disse-me que as pessoas não se identificam com aquele espaço. É como se os objectos que acompanharam existências e por isso são biográficos, tivessem sido "desvitalizados"...
Em contrapartida, qualquer alentejano se identifica com "o primeiro carro" onde se sentou, ou "os cenários da infância" que aquele espaço recorda, com um poderoso efeito de estufa, devido à inexistência de ar condicionado, que pelos vistos não pode aliviar o calor tórrido suscitado pela concepção que integra paredes exteriores de vidro e várias clarabóias. Deve ser quentinho no Inverno... Será que se pretendeu fazer um Museu do Alentejo Rural, aproveitando simbolicamente a morte de uma aldeia de camponeses?
O processo de mudança da velha para a nova aldeia evidenciou o fosso entre a EDIA e os moradores. Morreram vários idosos, houve bastante contestação, revolta, sofrimento. A mediatização contribuiu para criar anticorpos. Como os há na opinião pública em relação a temas tão polémicos como a reforma da função pública e da despenalização do aborto.
Talvez aquilo que está à mostra seja resultado da população ter sido combativa e inconveniente para Suas Excelências, que lhes estavam a oferecer habitações novas, a bela geometria das casas iguaizinhas, com umas portas (quase) todas do mesmo modelo, sem aldraba e uma (única) oliveira tão altaneira e emblemática no meio da enorme praça. Que queriam mais? Árvores? Para quê?
Lembro-me do espaço antigo, menos novo é certo, mas havia aldrabas na portas, substituídas por maçanetas douradas, que me asseguraram consubstanciar uma das imposições daqueles "que sabem o que é bom para o povo"... E esse é apenas um dos pormenores mais ínfimos das várias coisas que conheci e daquilo que escutei nas conversas com as pessoas. A ausência da água das ribeiras, do coberto vegetal, dos "cômoros", diziam.
Ausência...
Porque do museu à própria aldeia, o que se sente é um deserto. Resultado do pensamento único do novo riquismo arrogante de uns senhores engravatados de Lisboa, "onde há muita gente boa/ Mas do campo não vê nada", para citar a moda "Promessas", que cantadores como os do Grupo "Amigos do Alentejo" e as mulheres do Torrão e de Moura têm divulgado. Ou seja, uma constituição europeia em microcosmos...onde a fraternidade é esmagada pela fossanguice estatal.
Fiquei estarrecido e à tarde, nos olhos do sr. Francisco Oliveira, presidente da Junta de freguesia da Luz, eu vi a mágoa.
A pata dos senhores feudais agora tem um novo ferrete. Adivinhem como se chama...

(fotografia LFM)

De “ÁGUAS DO SUL”
Postado por oasis dossonhos às 15:27 1 comentários

COMENTÁRIOS
Barba Rija disse...
Dentro de pouco tempo vou à aldeia da luz, e aproveito a sua reflexão bastante negra para entender se é mesmo assim o que lá se passa.Mas acredito, e muito. As pessoas preferem não se chatear e dar uma esmola ao pobre que não conseguia subir as escadas (ao invés de ajudá-lo)...
É terrífico o que se testemunha aqui.
10 Outubro, 2005 18:48

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