Elas
Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas
acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas picam cebolas e
descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de comida azeda. Elas chamam
ainda escuro os homens e os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e
tarros e pastas de escola com latas e buchas e fruta embrulhada num pano limpo.
Elas lavam os lençóis e as camisas que hão-de suar-se outra vez. Elas esfregam
o chão de joelhos com escova de piaçaba e sabão amarelo e correm com os
insectos a que não venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas brigam nos
mercados e praças por mais barato. Elas contam centavos. Elas costuram e enfiam
malhas em agulhas de pau com as lãs que hão-de manter no corpo o calor da
comida que elas fazem. Elas vêm com um cântaro de água à cinta e um molho de
gravetos na cabeça. Elas limpam as pias e as tinas e as coelheiras e os
currais. Elas acendem o lume. Elas migam hortaliça. Elas desencardem o fundo
dos tachos. Elas passajam meias e calças e camisas e outra vez meias. Elas
areiam o fogão com palha de aço. Elas calcorreiam a cidade a pé e à chuva
porque naquele bairro os macacos são caros. Elas correm esbaforidas para não
perder o comboio, o barco. Elas pousam o cesto e abrem a porta com a mão
vermelha. Elas põem a tranca no palheiro. Elas enterram o dedo mínimo na
galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com um garfo
de zinco. Elas lambem a ponta do fio de linha para virar a camisa. Elas enchem
os pratos. Elas pousam o alguidar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a
coberta da cama. Elas abrem-se para um homem cansado. Elas também dormem.
Elas vão à parteira que lhes diz que já vai
adiantado. Elas alargam o cós das saias. Elas choram a vomitar na pia. Elas
limpam a pia. Elas talham cueiros. Elas passam fitilhos de seda no melhor
babeiro. Elas andam descalças que os pés já não cabem no calçado. Elas urram.
Elas untam o mamilo gretado com um dedal de manteiga. Elas cantam baixinho a
meio da noite a niná -lo para que o homem não acorde. Elas raspam as fezes das
fraldas com uma colher romba. Elas lavam. Elas carregam ao colo. Elas tiram o
peito para fora debaixo de um sobreiro. Elas apuram o ouvido no escuro para ver
se a gaiata na cama ao lado com os irmãos não dá por aquilo. Elas assoam. Elas
lavam joelhos com água morna. Elas cortam calções e bibes de riscado. Elas
mordem os beiços e torcem as mãos, a jorna perdida se o febrão não desce. Elas
lavam os lençois com urina. Elas abrem a risca do cabelo, elas entrançam. Elas
compram a lousa e o lápis e a pasta de cartão. Elas limpam rabos. Elas guardam
uma madeixita entre dois trapos de gaze. Elas talham um vestido de fioco para
uma boneca de papelão escondida debaixo da cama. Elas lavam as cuecas borradas
do primeiro sémen, do primeiro salário, da recruta. Elas pedem fiado popeline
da melhor para a camisa que hão-de levar para a França, para Lisboa. Elas vão à
estação chorosas. Elas vêm trazer uin borrego à primeira barraca e ao primeiro
neto. Elas poupam no eléctrico para um carrinho de corda.
Elas sobem para cima de um caixote, que ainda
são pequenas para chegar à bancada de descarnar o peixe. Elas mondam, os dedos
tolhidos de frieira e urtiga. Elas fazem descer a lâmina de cortar o coiro.
Elas sopram nos dedos a aquecê-los, esfregam os olhos, voltam a pôr as mãos por
detrás da lente a acertar os fios da matriz do transistor. Elas espremem as tetas
da vaca para o balde apertado entre as pernas. Elas fecham num dia as pregas de
papel de mil pacotes de bolacha. Elas acertam em duzentos casacos a postura da
manga onde cravar o botão. Elas limpam o suor da testa com a manga e a foice
rebrilha ao sol por cima da cabeça e da seara. Elas ouvem a matraca de dez
teares enquanto a peça cresce diante, o fio amandado de braço a braço aberto.
Elas cortam os dedos nas primeiras vinte cinco latas até calejar bem. Elas
fazem a agulha passar para cá e lá em cruz na tela do tapete. Elas vigiam a
última fieira de garrafas, caladas, à espera da sirene. Elas carregam o cesto
de azeitona à cabeça já sem cantar, até que o sol se ponha.
Elas carregam no botão da caixa e fazem
quinhentos trocos miúdos. Elas metem a cavilha, dizem outro número e passam a
vigésima chamada. Elas mexem panelões que lhes chegam à cinta. Elas descem doze
caixotes de lixo já noite fechada. Elas fazem todas as camas e despejos de uma
família alheia. Elas picam bilhetes metidas numa caixa de vidro. Elas batem à
máquina palavras que não entendem. Elas arquivam por ordem alfabética duas mil
fichas e vinte e cinco ofícios. Elas vão outra vez buscar a gaveta das luvas
para o balcão a ver se há aquele verde. Elas aspiram do pó antes das nove doze
assoalhadas, e cento e dez degraus de alcatifa. Elas entram na praça manhã
cedo, já vindas do lota ajoujadas com o peixe para as bancadas. Elas acertam as
bainhas de joelhos, a boca cheia de alfinetes. Elas põem trinta e duas
arrastadeiras e tiram sessenta temperaturas. Elas pintam unhas de homem. Elas
guardam sanitas e fazem renda em pequenos cubículos sem janela.
Elas olham para o espelho muito tempo. Elas
choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo
cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola. Elas limpam com algodão húmido as
dobras da vagina da menina pensando, coitadinha. Elas escondem os panos sujos
de sangue carregadas de uma grande tristeza sem razão. Elas sonham três noites
a fio com um homem que só viram de relance à porta do café. Elas trazem no saco
das compras uma pequena caixa de plástico que serve para pintar a borda dos
olhos de azul. Elas inventam histórias de comadres como quem aventura. Elas
compram às escondidas cadernos de romances em fotografias. Elas namoram muito.
Elas namoram pouco. Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos.
Elas arrancam os primeiros cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria.
Elas gritam a despropósito e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas
andam na vida sem a mãe saber, por mais três vestidos e um par de botas. Elas
pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas
chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa
entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas
queriam outra coisa.
Elas fizeram greves de braços caídos. Elas
brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que
era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas
vieram para a rua de encarnado. Eles foram pedir para ali uma estrada de
alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa
aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.
Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas
choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de
ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas
aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa.
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e
bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe,
“segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa
dizer-lhes como é”. Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma
parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos
na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e
não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e
aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e
as crianças adormecidas.
Maria Velho da Costa, dezembro de 1975
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