O prestigiado antropólogo Shawn Parkhurst, professor associado e Diretor do Programa de Estudos Portugueses na Universidade de Louisville, Kentucky, nos Estados Unidos da América, escreveu para o nº 21 da revista ALDRABA um artigo que gostosamente aqui se reproduz:
Adorar o Douro é selvagem ou salvagem, salvação ou silvado?
A resposta certa, para mim, é “sim”!
O amor agarrou-me em 1992. Agarrou-me por dentro, como uma
mão que enfia luva. No exterior, tatuou-me com beijos silvestres. A mão e os
lábios do Douro têm-me na posse agora há duas décadas e meia. Continuo
possuído, mas é triste: minguo a vida nos Estados Unidos, o país onde nasci já
exilado da terra a que sempre pertenci. Este meu país não sabe oscular.
Os beijos mais doces que o Douro me deu entregaram-se nas
encostas que fazem a metade vertical da região. São encostas que se erguem como
tabuleiros de xadrez já quebrados e recompostos inúmeras vezes pela paixão de
trovoadas, pelas sapadas conseguintes, e pelas peças do jogo que resistem à
voragens por lançar raízes nas fendas invisíveis do santo xisto; continuam
sendo espinhos de cardos que se transformam na marmelada do calão que se dedica
a registar a diferença entre fragão, pedra, pedrinha, rocha, fraga, joga, laja,
eira, seixo e, claro, calhau.
A marmelada se empina em socalcos, geias, geios, e botaréus
que se vestem com videiras e oliveiras quando a vida anda simples. O outro
modo, mais dramático, é também mais comum no Douro. O modo é o do
reconhecimento dos defuntos.
Enquanto a lentidão dos carvalhos, zimbros, e medronheiros
junta-os à gente compadecida, outras presenças mais voláteis infundem cores tão
brilhantes e olores tão adstringentes que põem os corpos dos aflitos
sobreviventes de atalaia: serralhas, papoilas, bildros, joios e tremoceiros se
aterram por uns momentos, como um bando de estorninhos feitos de arco-íris.
Fogem como chegaram. A arçã e a carqueja tardam mais, e o carrasco preside:
vagueamos nos mortórios, enfim. O drama não acaba com a ressurreição, mas
continua bem além dela. Então o que queres?
Podes querer saber mais, o que se iguala a querer saborear o
nó que, pulsando, segura termos da boca a termos da terra. Assim és como eu:
sempre quero ir de termos à terminação, sem pressa, e com o mapa militar
apropriado pela gente que sussurra as cantigas dos lugares: Castanheiro do Cão,
por exemplo, ou Penedo do Sino, ou Jancozêlo. Pierre Reverdy jurou que poesia é
emoção. Penso que pôs o pé perto da verdade, que surge da terra. Terra, poesia
e emoção não existem uma sem as outras.
Acrescentaria que eu já não existo sem o Douro, mesmo estando
longe dele. Os nós são dum tamanho transatlântico; os sinaizinhos que compõem o
Douro existem em constelações com pés cravados, entre vale e céu, nos apoios
das meias encostas.
Ainda falta descrever até um canto diminutivo duma só
constelação. Empenho-me com o projecto, que chamarei “selvagem”, “salvagem”, “salvação”,
“silvado” e “sobrevivência”.
Shawn Parkhurst
Sem comentários:
Enviar um comentário