A ALDRABA está atenta ao património natural do nosso país, e às notícias que lhe dizem respeito. Assim, pela curiosidade que contém este episódio da nossa história natural, reproduzimos uma reportagem publicada no "Diário de Notícias" sobre a descoberta na Madeira, em 1885, de um peixe com aspeto causador de terror, que ficou designado por "Melanocetus johnsonii", em honra do cientista inglês que o descobriu, James Yate Johnson:
Dos mares da Madeira
emergiu no séc. XIX um “diabo” aquático
Costa
norte da ilha da Madeira, freguesia de São Vicente, ano de 1885. Um intrépido
naturalista inglês desce ao cerne da terra. Os habitantes do lugar informaram o
cientista da existência da boca de uma gruta rasgada na rocha de origem
vulcânica. A placidez do lugar, um vale viçoso a correr em direção ao
Atlântico, engana o tumulto da sua história pretérita. Há 890 mil anos, uma
erupção vulcânica ocorrida a sul, nas alturas do Paul da Serra, lançou
torrentes de lava rumo ao litoral. Do cataclismo nasceria uma rede de túneis.
James Yate Johnson, nascido em 1920, então com 65 anos, não hesitou perante o
negrume das mais tarde batizadas Grutas de São Vicente. Entrou na bocarra de
origem vulcânica e assumiu a descoberta oficial do lugar. Johnson apaixonara-se
pela Madeira muitos anos antes, em 1851.
Nas
décadas seguintes, o britânico percorreria milhares de quilómetros nos caminhos
madeirenses. Também singrou no mar. O clima suave do território contrastava com
a aspereza da Kendal natal de Johnson, localidade do noroeste de Inglaterra.
Peixes, ouriços-do-mar, crustáceos, esponjas, aranhas terrestres, flores e
musgos, tudo serviu o interesse e a curiosidade científica de James Yate. Um
afã que levou o naturalista a recolher espécimes para catalogação própria, mas
também a pedido de colegas naturalistas como George Busk, paleontólogo e
botânico britânico de origem russa.
Seria
do mar, a 24 de dezembro de 1863, que James Yate Johnson colheu a criatura que
alimentou a matéria para inúmeros manuais de zoologia nos anos seguintes. Já
nas mãos do responsável de zoologia do Museu de História Natural de Londres, o
zoólogo Albert Günther, o ente marinho com pouco mais de dez centímetros de
comprimento e a pesar cerca de oito gramas, mereceu a primeira descrição da sua
morfologia, sintetizada nos seguintes termos: “Este peixe singular distingue-se
pela desproporção das várias partes do corpo (...), a cabeça, de forma
tetraédrica, é a parte mais extensa de todo o animal. A boca é enorme (...) A
extensibilidade lateral da boca não é menor do que a vertical; de modo que a
presa que aí é recebida pode exceder o tamanho do próprio peixe”.
As palavras
vertem da obra de 1885, The Annals and magazine of natural history;
zoology, botany, and geology (vol. 15). O animal em questão seria
classificado pela ciência como Melanocetus johnsonii, em honra do
cientista que o descobriu. À vista, a criatura parece-nos saída de um conto de
terror lovecraftiano. O também denominado Peixe-Diabo Negro, é um ser abissal,
habita profundidades até ao 1,5 Km, na zona batipelágica, onde a temperatura
média ronda os 4°C e a pressão atinge os 400 Kg por cm2. A vida
do Melanocetus johnsonii decorre em regiões afastadas do olhar
humano. O pequeno peixe com um comprimento máximo de 18 cm, disseminado em
todos os oceanos, atrai as presas com um falso isco luminoso bolboso que lhe
eclode do focinho. As fêmeas apresentam olhos subcutâneos, enevoados, e exibem
um espinho curto na barbatana dorsal. A pele e os dentes excretam um dos
venenos mais letais para as criaturas marinhas. A toxina botulínica causa
paralisia muscular, eventual paralisia do sistema respiratório, a anteceder a
morte.
Entre
os inúmeros mistérios a envolver a existência do Melanocetus johnsonii,
um deteve a atenção de ictiólogos ao longo de décadas. Nenhum macho deste peixe
das profundidades fora capturado. Em 1924, o britânico Charles Tate Regan
percebeu a existência de um pequeno peixe que parasitava um exemplar da
criatura descoberta cerca de 60 anos antes por James Yate Johnson. Regan
percebeu tratar-se de um macho de Melanocetus johnsonii em
processo de reprodução. Esta espécie conta com um dos mais notáveis exemplos de
dimorfismo sexual, com a ocorrência de indivíduos do sexo masculino e feminino
de uma espécie com características físicas não sexuais marcadamente diferentes.
O macho do Peixe-Diabo Negro não mede mais de 3 cm e depende da fêmea para se
alimentar.
Em
2014, a comunidade científica saudou as filmagens que chegavam das
profundidades do mar ao largo do estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Um
espécime de Melanocetus johnsonii fora filmado, pela primeira
vez, no seu habitat. O submersível Doc Ricketts, operado pelo Monterey Bay
Aquarium Research Institute, captava num filme de poucos segundos o carácter
extraordinário do peixe.
James
Yate Johnson morreu na cidade do Funchal no ano de 1900. Permaneceu no
arquipélago atlântico perto de cinco décadas, sem esconder a afeição pelo
território. Em 1860, escreveu o guia para viajantes Madeira, its
climate and scenery, um detalhado manual para conhecimento das ilhas.
Geografia física, conselhos médicos, história, gentes, monumentos, paisagem e
jardinagem, clima, zoologia, entre inúmeros temas, perpassam as páginas do
livro. Não faltam curiosidades. Nos idos da década de 1860, a viagem entre o
Funchal e a Calheta era périplo para oito horas e amiúdes paragens para
descanso dos viajantes.
Jorge
Andrade, DN, 21/10/2024