O grande músico, compositor e maestro que foi Fernando Lopes Graça (1906-1994), corajoso intelectual antifascista, perseguido e preso várias vezes pela PIDE, e cujo trabalho de recolha, divulgação e tratamento da canção popular portuguesa foi desenvolvido à revelia e com a hostilidade oficial do Estado Novo, deixou nos seus escritos importantes reflexões sobre a dicotomia entre o rústico e o urbano, que interessam a todos os que se preocupam com o património popular.
Aqui ficam algumas dessas reflexões:
“Não há um reportório qualificado de canções nacionais que todos cantemos pela vida fora, a começar no lar e na escola e a acabar nas grandes manifestações cívicas ou nos grandes trabalhos coletivos. Por outro lado, o rico manancial das nossas canções rústicas é desconhecido das populações urbanas; podia fornecer matéria para uma saudável obra de educação musical popular, mas infelizmente o que sucede é que, quando os produtos do nosso folclore, aliás nem sempre os melhores, os mais característicos, chegam às cidades, é já através das adulterações dos fabricantes de música ligeira e das medíocres “estilizações” das cantadeiras e cantadores do teatro e da rádio (…). No nosso país, pode dizer-se que só a gente dos campos e aldeias canta ainda com verdadeira frescura e espontaneidade. Nas cidades, o que se ouve é, em geral, confrangedor. Um dos espetáculos mais tristes da nossa vida social é o que se nos oferece quando várias pessoas reunidas numa festa, num passeio, numa ocupação qualquer, ou em simples camaradagem, se dispõem a realizar um dos mais elementares e ao mesmo tempo mais profundos atos humanos: o do canto em comum. Em regra, ninguém sabe o que há-de cantar, cada qual puxa para seu lado, há discussões, há amuos e, se por milagre se chega a acordo, o que aquelas vozes, em geral estragadas e desafinadas, acabam por entoar é quase sempre uma coisa hedionda, que revela a completa falta de sensibilidade, a total deseducação estética das camadas populares citadinas”.
(FLG, “Valor estético, pedagógico e patriótico da canção popular portuguesa”, em Vértice, maio de 1949)
“Por toda a parte se formam ’ranchos folclóricos’, as vedetas da rádio brilham no ‘estilo folclórico’, os restaurantes anunciam os seus ‘pratos folclóricos’, há os trastes e adornos caseiros folclóricos – enfim, o folclore invadiu tudo, o folclore tornou-se uma tineda, uma doença, um modo de vida. (…) A esta contrafação folclórica há que opor o folclore autêntico, as canções da Beira Baixa e do Alentejo, a canção popular portuguesa que é crónica viva e expressiva da vida do povo português. (…) Só as populações dos campos, serras e aldeias de Portugal são depositárias de um tesouro inexaurível de melodias que, na sua pureza, na sua frescura, na sua autenticidade étnica, na variedade e naturalidade das suas formas, nas suas surpreendentes características estéticas, enfim (a que não falta, como se tem suposto e afirmado, a profundeza, a gravidade, o calor da altura) têm jus a ser consideradas como espelhando inequivocamente a nossa psique. (…) Como o homem da cidade, mas certamente sem as complicações literárias e os requintes patológicos deste, o homem rústico ama, e todo um tratado de psicologia amorosa do nosso povo se poderia escrever através das suas canções amorosas, tão variada, tão imprevista, tão rica de cambiantes, tão reveladora é a fama dos sentimentos, ideias e situações que estas traduzem. (…) Habituados os públicos, pela maioria, a julgarem a canção portuguesa pelo paradigma do execrando fado ou das pífias contrafações revisteiras e radiofónicas, um novo mundo de pura e saudável expressão musical, haurida da própria terra e revelando a verdadeira fisionomia espiritual do nosso povo, se lhes patenteou e com ele imediatamente se identificaram”.
(FLG, A canção popular portuguesa, Lisboa, 1953).
Fotografia reproduzida do blogue “Praia da claridade”
Citações extraídas de José Neves, Comunismo e nacionalismo em Portugal, Lisboa, 2008.
Sem comentários:
Enviar um comentário