terça-feira, 29 de maio de 2018

Lançamento do nº23 da revista "Aldraba" em 4.6.2018 na J.F.Avenidas Novas



















O Prof. Pedro Prista, docente de antropologia do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, acedeu gentilmente a fazer a apresentação do nº 23 da nossa revista "Aldraba", o que muito nos honra.

A sessão de lançamento vai ter lugar no salão de sessões da sede da Junta de Freguesia das Avenidas Novas, em Lisboa, no belo palacete romântico do nº 1 da Av. de Berna, onde a autarquia está agora instalada, pelas 19 horas da 2ª feira do próximo dia 4 de junho de 2018.

A acolher a sessão, teremos igualmente o privilégio da presença da escritora Alice Vieira, nossa amiga e também autarca eleita na J.F.Avenidas Novas, bem como da presidente da Junta, Ana Gaspar.

O novo número da revista que vai ser apresentado tem o seguinte sumário:

EDITORIAL
A propósito do Jardim da Estrela
José Alberto Franco

OPINIÃO
Eugénio de Andrade: o poeta que valorizou a cultura popular
Luís Filipe Maçarico

LUGARES DO PATRIMÓNIO
O “Gobelin” de Napoleão
Nuno Roque da Silveira
Memória de Almada nos anos 60
Manuel Rodrigues Vaz

RITUAIS, TRADIÇÕES E REALIDADE
A última morada - um projeto de regresso à origem em data indefinida
Maria Beatriz Rocha-Trindade
Velhas lendas do Castro dos Ratinhos (Moura)
Marco Valente

SABORES COM HISTÓRIA
A confecção tradicional da broa numa aldeia beirã
João Coelho
Açorda de alho
Luís Ferreira

À CONVERSA COM…
Entrevista a Henrique Espírito Santo
Luís Filipe Maçarico e Maria Odete Roque

DESABAFOS
Viagem pela memória da senilidade, na primeira pessoa
Paula Lucas da Silva

OS AMIGOS E A MEMÓRIA
Na hora da despedida de um velho amigo
Francisco Palma Colaço

VULTOS A ADMIRAR
João de Deus, ultra-romântico e humanista
Elsa Rodrigues

ALDRABA EM MOVIMENTO
Novembro de 2017 a Abril de 2018

Maria Eugénia Gomes


Todos os amigos e associados da ALDRABA são desafiados a aparecerem e a trazerem outros amigos consigo.

JAF




terça-feira, 22 de maio de 2018

Na despedida do associado José Soares



















Por ocasião do falecimento em agosto de 2017 do nosso associado José Soares, o amigo e também associado da Aldraba Francisco Colaço dirigiu-lhe uma evocação que aqui reproduzimos (igualmente publicada no recente nº 23 da nossa revista):


NA HORA DA DESPEDIDA DE UM VELHO AMIGO

Querido amigo Zé Soares,

Apesar da distância que nos separa fisicamente, não queria deixar de estar espiritualmente presente, junto dos teus entes queridos e certamente muitos dos teus numerosos amigos, neste momento tão cruel e inevitável da despedida. No adeus a uma vida tão bem preenchida que atravessaste.

Foram 85 anos que por cá andaste. Parece uma eternidade para um jovem, mas para quem chega a esta meta, parece pouco sobretudo para quem como tu sentia tanta alegria em viver. Não sei se na proximidade desta hora, como pessoa racional e frontal que te conheci, não fizeste esta reflexão: “José tu foste um privilegiado em relação ao teu infeliz pai, que viveu apenas metade da tua idade, partindo precocemente aos 43 anos, amargurado por deixar à sua sorte, em tempos tão difíceis, viúva e 5 órfãos, 3 dos quais ainda crianças. Tinha eu apenas 10 anos e apercebi-me quanto foi duro para a minha pobre mãe ter de vergar-se ao peso de amassar diariamente fornadas de pão para vender “para fora”, a fim de sustentar a família. Enquanto eu, apesar de todas as dificuldades e contrariedades por que passei, quer na infância, quer mais tarde quando vi partir prematuramente a Bia, mãe dos meus 3 filhos, vivendo num país diferente do nosso que nos acolhera, situação difícil que consegui superar graças ao amor e dedicação de uma outra mulher extraordinária, Fátima, que foi uma 2ª mãe para os meus filhos e ainda me deu mais uma filha. Portanto posso-me considerar um homem feliz, parto com a consciência tranquila de dever cumprido, com a satisfação de deixar os meus 4 filhos confortavelmente instalados na vida e os meus 8 netos com futuro prometedor”.

Ligava-nos uma forte amizade de mais de meio século. Embora eu fosse mais novo de uma dúzia de anos, ainda na adolescência comecei a frequentar os mesmos espaços do Zé Centro Republicano, café do Manuel Guerreiro e sobretudo a Livraria do Edmundo da Silva, local emblemático habitual de convívio e de conspiração de oposicionistas ao regime totalitário que então nos oprimia. Espaço que era preferencialmente vigiado pelos informadores da Pide, anotando os frequentadores mais assíduos e as horas que ali permaneciam.

Entretanto, um acontecimento ocorrido em Aljustrel veio a marcar profundamente as nossas vidas – 4 de dezembro de 1963, dia de Santa Bárbara, Padroeira dos Mineiros. A PIDE sem qualquer pudor e respeito pela data que a comunidade se preparava para festejar, inesperadamente, nessa madrugada, invade a vila e os bairros mineiros prendendo 20 oposicionistas. Entre eles os “habitués” Edmundo da Silva (6ª prisão), o tio do Zé João Eugénio (3ª prisão) e o seu cunhado Francisco Rasquinho (2ª prisão). O medo que se apoderou da vila, não foi impeditivo da nossa reunião habitual à noite no café, desta vez noutro, pois o habitual não abrira, devido à prisão do seu proprietário Manuel Guerreiro. Sob pretexto de uma partida de dominó, eu, o Zé, o seu irmão João e o amigo José Alberto da Silva ali estávamos a desafiar os prováveis olhares atentos de algum informador, murmurando em surdina a nossa revolta contra mais esse acto repressivo sobre o povo laborioso e pacífico, mas insubmisso, da nossa terra. Este episódio de cumplicidade veio sem dúvida cimentar a nossa amizade. Estas prisões e os meses de angústia que se seguiram, tiveram no José um efeito decisivo de partir para o exílio, o que veio a verificar-se em agosto do ano seguinte. Eu como já estava decidido a partir, passado 2 meses encontrava-me em Paris.

No exílio continuámos a cultivar a nossa amizade, num laço que abrangia também a família Rasquinho, tendo como denominador comum, o amor e a saudade à nossa terra natal e os mesmos ideais que partilhávamos.

Entretanto veio o 25 de Abril, movimento redentor, que devolveu a Liberdade ao Povo Português e a esperança de viver num mundo melhor. Regressei com a família a Aljustrel, integrando-me definitivamente na vida da comunidade local. A nossa amizade nesta nova situação não deixou de se reforçar, eu agora no papel de elo com a nossa terra. Ambos concebemos o projecto de levar a renascida Filarmónica à Bélgica. Decorria o ano de 1979, comemorava-se o Milenário da Cidade de Bruxelas, aproveitando um convite da Filarmónica para se deslocar a Lyon o que facilitaria a sua deslocação a Bruxelas, o Zé desenvolveu esforços e foi possível concretizar esse almejado sonho. Concerto na majestosa Grand Place no quadro das referidas comemorações, ao que se seguiu também outro concerto para a comunidade portuguesa no âmbito dos Festejos do Dia de Portugal e ainda uma digressão às cidades francesas de Hem e Roubaix, onde muitas famílias aljustrelenses viviam. Este também foi um importante marco que consolidou a nossa amizade.

Os anos e as visitas mútuas, cá e lá, decorreram a um ritmo alucinante. Entretanto, também fomos perdendo, inevitavelmente, familiares de ambos os lados e amigos comuns, que tanta mágoa nos provocou. Até que há pouco mais de um ano tocou o alarme para o amigo José: cirurgia, tratamentos e toda a angústia que uma doença deste tipo acarreta para o paciente e família. Admirei a tua coragem, pouco tempo após a cirurgia de teres vindo à nossa terra natal, num acto simbólico de despedida. Pareceu-me que esse desafio representaria para ti uma vitória sobre a doença. Infelizmente esse acto de coragem e manifestação de esperança não foi suficiente para vencer o mal.

Durante este prolongado período de inquietação, de sofrimento, fui mantendo contigo o diálogo possível, através de frequentes e longas conversas telefónicas, procurando temas à volta da nossa terra, quer pondo-te ao corrente do que aqui se passava ou estimulando as tuas tão ricas memórias, desviando-te propositadamente o pensamento daquilo que te afligia. Sei que para ti essas nossas cavaqueiras constituíam de certo modo um estímulo. Para mim, perante a lucidez que sempre foste mantendo, criava-me a ilusão de que tudo parecia normal, pois o interlocutor apenas se queixava da crescente falta de força.

Da nossa derradeira conversa jamais esquecerei, o esforço que tu fizeste para conseguir entoar a “Marcha de Aljustrel”, com letra de Edmundo da Silva, estreada nas Festas da Vila de Aljustrel, realizadas pelo Carnaval de 1936. Senti a alegria que manifestaste ao chegares ao fim dos versos, sem balbuciar. E assim cantaste:

Haja alegria
e reinação
que a nossa festa
é um festão
E com ardor
vamos p’ra Praça
que lá se mostra
o valor da nossa raça

Esta nossa vila é porreira
Dizer isto é que nos compete
Não temos água p’ros esgotos
Mas vão-nos dar uma retrete.

Era este refrão, que o nosso saudoso amigo Manuel Fialho costumava trautear quando se referia a Aljustrel, também seu sagrado berço. E foi também com estes versos que tu te despediste de mim. Ironia do destino…

Um amigo é uma escolha que fazemos na vida e como seria bom se fosse para toda a vida! Infelizmente, nesta corrida pela sobrevivência, alguns ficam pelo caminho e quando se trata de alguém muito próximo, a dor que sentimos não tem explicação.


Nesta hora tão penosa de despedida do meu amigo José, associo-me à dor da sua companheira Fátima, dos filhos Filomena, Manuel, Paulo, Cecile e dos netos Simon, Matilde, Maria, Sara, Emil, Louis, Tim e Claire, a quem transmito as minhas mais sentidas condolências. 

Francisco Palma Colaço

segunda-feira, 14 de maio de 2018

A broa de milho
















Encontra-se no prelo, e vai começar a ser distribuído dentro de dias, o nº 23 da revista "Aldraba". Pré-publicação de um dos seus artigos:


A confeção tradicional da broa numa aldeia beirã

Revivendo as memórias da minha infância, recordo que a broa de milho era confecionada e cozida semanalmente em forno próprio ou cedido por um vizinho, num cenário de uma certa sacralidade, com rezas e bênçãos durante todo o seu processo
Sendo uma aldeia, como muitas outras, com uma economia familiar pobre, assente numa agricultura de sobrevivência, mas buscando alguma autossuficiência com trabalho e meios próprios, a troca de serviços com os vizinhos e recorrendo ao seu burrico, ora atrelado ao carro ora ao arado.
O pão na mesa era o resultado de mil canseiras, fazendo jus ao aforismo de “o pão que o diabo amassou”, pois era duro e longo o ciclo tradicional do pão: a preparação da terra, a sementeira, a rega, a recolha, a secagem na eira, a debulha da espiga, a moagem do milho e depois, sim, a broa. E ainda e sempre os imponderáveis do tempo… a chuva, o frio, o sol!
O grão deitado à terra em abril só em setembro frutificava. E “com quantos grãos um pão se fez?/Dez mil talvez/dez mil almas, dez mil calvários e agonias/Todos os dias…” (do poema “A Oração do Pão”, de Guerra Junqueiro).
Mas abordemos, sucintamente, a tradicional confeção da broa.
O processo começava, geralmente, na antevéspera com a moagem de um saco de milho, denominado de fole ou taleiga, no moinho de água da aldeia.
No dia do cozimento do pão, a farinha era peneirada para um recipiente retangular de madeira, a masseira. Adicionava-se-lhe o sal, o fermento (um pedaço de massa recolhido e guardado da fornada anterior) e a água necessários para a obtenção de uma amassadura macia, homogénea e consistente, depois de bem embolada pelas mãos da forneira durante cerca de meia hora. Com aquele saber fazer próprio e caseiro, transmitido ao longo dos anos.
Preparada a massa, esta era colocada num dos cantos da masseira, bem alisada com a mão, polvilhada com um punhado de farinha e coberta por uma manta, depois de feita no meio massa uma cruz, em baixo relevo, seguida da sacrossanta recomendação:
"S. Vicente te acrescente, 
S. Mamede te levede e 
S. João de ti faça pão
Ámen" 
(bênção recolhida de Maria do Carmo Henriques, mãe do autor deste artigo)
E a massa ficava a levedar durante cerca de duas horas. Entretanto, o forno era aquecido com lenha, anteriormente recolhida em hortas e pinhais.
Estando a massa levedada, ou finta, facto reconhecido pela abertura de lanhos na massa ou por um cheiro a levedo, era verificado o estado do forno; este só estaria bem aquecido quando as ombreiras da porta se apresentassem com uma cor esbranquiçada.
E vinham novas tarefas: a limpeza do forno com um rodo e um vassoiro, concentrando na soleira da porta os restos do braseiro; a divisão da massa em pedaços, equivalendo a 8 ou 10 broas por fornada; o baquear da broa (enformar a broa). Colocada a massa numa tijeloa (malga em porcelana com um formato apropriado), era vê-la a saltar e a rolar até que ficasse redondinha e ser virada na pá – peça com cabo de madeira e chapa ferro - para ir ao forno, com mais uma bênção:
“Cresça o pão no forno,
Ele a crescer
E nós a comer
Reze quem puder e souber”
Um trabalho feito por duas pessoas, geralmente mulheres.

Uma hora depois, as broas já estavam cozidas e eram retiradas do forno, pairando, então, no ar aromas a pão cozido, que jamais esqueceremos.
As broas eram depois guardadas em lugar fresco, geralmente na loja da casa.
E as fornadas – forno completo com broas – sucediam-se semanalmente, seguindo os mesmos processos e ritos.
Hoje a realidade é bem outra face ao surgimento das novas tecnologias, aplicadas também na panificação. O pão chega-nos diariamente a casa trazido pelo padeiro ou adquirido em qualquer estabelecimento comercial. Na aldeia e na cidade.
Porém, para que tais saberes e práticas sejam ainda vivenciados, lá vão acontecendo, nas aldeias, revisitações ao passado com a confeção da broa em antigos fornos ainda existentes, para gáudio dos seus naturais e, até, de forasteiros, como sucedeu no XVI Encontro da Associação Aldraba em Mosteiro, Pedrógão Grande, em que o milho fora moído tradicionalmente, em moinho de água local, alvo de obras de recuperação.
Realmente, o pão faz parte da história de qualquer comunidade ou povo, constituindo um dos alimentos centrais da sua alimentação.
Daí a sua veneração e sacralização. Ontem, como hoje.
João Coelho