terça-feira, 22 de maio de 2018

Na despedida do associado José Soares



















Por ocasião do falecimento em agosto de 2017 do nosso associado José Soares, o amigo e também associado da Aldraba Francisco Colaço dirigiu-lhe uma evocação que aqui reproduzimos (igualmente publicada no recente nº 23 da nossa revista):


NA HORA DA DESPEDIDA DE UM VELHO AMIGO

Querido amigo Zé Soares,

Apesar da distância que nos separa fisicamente, não queria deixar de estar espiritualmente presente, junto dos teus entes queridos e certamente muitos dos teus numerosos amigos, neste momento tão cruel e inevitável da despedida. No adeus a uma vida tão bem preenchida que atravessaste.

Foram 85 anos que por cá andaste. Parece uma eternidade para um jovem, mas para quem chega a esta meta, parece pouco sobretudo para quem como tu sentia tanta alegria em viver. Não sei se na proximidade desta hora, como pessoa racional e frontal que te conheci, não fizeste esta reflexão: “José tu foste um privilegiado em relação ao teu infeliz pai, que viveu apenas metade da tua idade, partindo precocemente aos 43 anos, amargurado por deixar à sua sorte, em tempos tão difíceis, viúva e 5 órfãos, 3 dos quais ainda crianças. Tinha eu apenas 10 anos e apercebi-me quanto foi duro para a minha pobre mãe ter de vergar-se ao peso de amassar diariamente fornadas de pão para vender “para fora”, a fim de sustentar a família. Enquanto eu, apesar de todas as dificuldades e contrariedades por que passei, quer na infância, quer mais tarde quando vi partir prematuramente a Bia, mãe dos meus 3 filhos, vivendo num país diferente do nosso que nos acolhera, situação difícil que consegui superar graças ao amor e dedicação de uma outra mulher extraordinária, Fátima, que foi uma 2ª mãe para os meus filhos e ainda me deu mais uma filha. Portanto posso-me considerar um homem feliz, parto com a consciência tranquila de dever cumprido, com a satisfação de deixar os meus 4 filhos confortavelmente instalados na vida e os meus 8 netos com futuro prometedor”.

Ligava-nos uma forte amizade de mais de meio século. Embora eu fosse mais novo de uma dúzia de anos, ainda na adolescência comecei a frequentar os mesmos espaços do Zé Centro Republicano, café do Manuel Guerreiro e sobretudo a Livraria do Edmundo da Silva, local emblemático habitual de convívio e de conspiração de oposicionistas ao regime totalitário que então nos oprimia. Espaço que era preferencialmente vigiado pelos informadores da Pide, anotando os frequentadores mais assíduos e as horas que ali permaneciam.

Entretanto, um acontecimento ocorrido em Aljustrel veio a marcar profundamente as nossas vidas – 4 de dezembro de 1963, dia de Santa Bárbara, Padroeira dos Mineiros. A PIDE sem qualquer pudor e respeito pela data que a comunidade se preparava para festejar, inesperadamente, nessa madrugada, invade a vila e os bairros mineiros prendendo 20 oposicionistas. Entre eles os “habitués” Edmundo da Silva (6ª prisão), o tio do Zé João Eugénio (3ª prisão) e o seu cunhado Francisco Rasquinho (2ª prisão). O medo que se apoderou da vila, não foi impeditivo da nossa reunião habitual à noite no café, desta vez noutro, pois o habitual não abrira, devido à prisão do seu proprietário Manuel Guerreiro. Sob pretexto de uma partida de dominó, eu, o Zé, o seu irmão João e o amigo José Alberto da Silva ali estávamos a desafiar os prováveis olhares atentos de algum informador, murmurando em surdina a nossa revolta contra mais esse acto repressivo sobre o povo laborioso e pacífico, mas insubmisso, da nossa terra. Este episódio de cumplicidade veio sem dúvida cimentar a nossa amizade. Estas prisões e os meses de angústia que se seguiram, tiveram no José um efeito decisivo de partir para o exílio, o que veio a verificar-se em agosto do ano seguinte. Eu como já estava decidido a partir, passado 2 meses encontrava-me em Paris.

No exílio continuámos a cultivar a nossa amizade, num laço que abrangia também a família Rasquinho, tendo como denominador comum, o amor e a saudade à nossa terra natal e os mesmos ideais que partilhávamos.

Entretanto veio o 25 de Abril, movimento redentor, que devolveu a Liberdade ao Povo Português e a esperança de viver num mundo melhor. Regressei com a família a Aljustrel, integrando-me definitivamente na vida da comunidade local. A nossa amizade nesta nova situação não deixou de se reforçar, eu agora no papel de elo com a nossa terra. Ambos concebemos o projecto de levar a renascida Filarmónica à Bélgica. Decorria o ano de 1979, comemorava-se o Milenário da Cidade de Bruxelas, aproveitando um convite da Filarmónica para se deslocar a Lyon o que facilitaria a sua deslocação a Bruxelas, o Zé desenvolveu esforços e foi possível concretizar esse almejado sonho. Concerto na majestosa Grand Place no quadro das referidas comemorações, ao que se seguiu também outro concerto para a comunidade portuguesa no âmbito dos Festejos do Dia de Portugal e ainda uma digressão às cidades francesas de Hem e Roubaix, onde muitas famílias aljustrelenses viviam. Este também foi um importante marco que consolidou a nossa amizade.

Os anos e as visitas mútuas, cá e lá, decorreram a um ritmo alucinante. Entretanto, também fomos perdendo, inevitavelmente, familiares de ambos os lados e amigos comuns, que tanta mágoa nos provocou. Até que há pouco mais de um ano tocou o alarme para o amigo José: cirurgia, tratamentos e toda a angústia que uma doença deste tipo acarreta para o paciente e família. Admirei a tua coragem, pouco tempo após a cirurgia de teres vindo à nossa terra natal, num acto simbólico de despedida. Pareceu-me que esse desafio representaria para ti uma vitória sobre a doença. Infelizmente esse acto de coragem e manifestação de esperança não foi suficiente para vencer o mal.

Durante este prolongado período de inquietação, de sofrimento, fui mantendo contigo o diálogo possível, através de frequentes e longas conversas telefónicas, procurando temas à volta da nossa terra, quer pondo-te ao corrente do que aqui se passava ou estimulando as tuas tão ricas memórias, desviando-te propositadamente o pensamento daquilo que te afligia. Sei que para ti essas nossas cavaqueiras constituíam de certo modo um estímulo. Para mim, perante a lucidez que sempre foste mantendo, criava-me a ilusão de que tudo parecia normal, pois o interlocutor apenas se queixava da crescente falta de força.

Da nossa derradeira conversa jamais esquecerei, o esforço que tu fizeste para conseguir entoar a “Marcha de Aljustrel”, com letra de Edmundo da Silva, estreada nas Festas da Vila de Aljustrel, realizadas pelo Carnaval de 1936. Senti a alegria que manifestaste ao chegares ao fim dos versos, sem balbuciar. E assim cantaste:

Haja alegria
e reinação
que a nossa festa
é um festão
E com ardor
vamos p’ra Praça
que lá se mostra
o valor da nossa raça

Esta nossa vila é porreira
Dizer isto é que nos compete
Não temos água p’ros esgotos
Mas vão-nos dar uma retrete.

Era este refrão, que o nosso saudoso amigo Manuel Fialho costumava trautear quando se referia a Aljustrel, também seu sagrado berço. E foi também com estes versos que tu te despediste de mim. Ironia do destino…

Um amigo é uma escolha que fazemos na vida e como seria bom se fosse para toda a vida! Infelizmente, nesta corrida pela sobrevivência, alguns ficam pelo caminho e quando se trata de alguém muito próximo, a dor que sentimos não tem explicação.


Nesta hora tão penosa de despedida do meu amigo José, associo-me à dor da sua companheira Fátima, dos filhos Filomena, Manuel, Paulo, Cecile e dos netos Simon, Matilde, Maria, Sara, Emil, Louis, Tim e Claire, a quem transmito as minhas mais sentidas condolências. 

Francisco Palma Colaço

1 comentário:

  1. José Soares, um homem muito digno que nos deixou, mas a sua presença continuará na memória dos seus numerosos amigos, filhos, netos e bisnetos.
    Ao Francisco Colaço, felicitações sobre o excelente texto que escreveu sobre a vida do Zé.

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