domingo, 18 de março de 2012

50 anos depois, a memória da "crise académica" de Março de 1962










Comemora-se agora o cinquentenário da crise académica de 62. Seria redutor ficarmos no agridoce conforto de nostalgias, pois essa data pede-nos sobretudo a pedagogia de um inventário e o dever de um testemunho. Ao olharmos para trás, voltamos a sentir que essas foram horas de aprendizagem de vida e de cidadania, de múltiplos desafios, de inevitáveis testes de carácter. Mas foi também um raro momento de unidade, em que muitos descobriram como construir o triunfo da razão sobre a força, ou da justiça sobre a prepotência.
Vale, por isso, a pena assinalar, sobretudo junto das novas gerações, alguns fundamentos de uma crise académica que lhes parecerão anacronicamente absurdos. Quando em março de 1962 se procurou comemorar o dia do estudante, o regime escondia mal as feridas acusadas pela perda de Goa, pela insurreição em Angola, pelo frustrado assalto ao quartel de Beja, e por vários indícios de desgaste postos a nu pela falhada tentativa do general Botelho Moniz. Tudo isto se começava a refletir numa nova dinâmica do movimento associativo que, em Lisboa, congregava mais de uma dúzia de associações e organismos autónomos, coordenados por uma estrutura informal - a RIA (reunião interassociações). O ato da inauguração do edifício da reitoria dera já um sinal: coubera-me não aceitar, como representante dos estudantes, a censura ao texto que me propunha ler, o que motivaria a ausência institucional do corpo discente na cerimónia. A posterior proibição do dia do estudante atuou como faísca, ao mostrar a face arbitrária do governo, a arrogância do seu comportamento pela recusa do diálogo e pela desautorização do reitor, num atropelo à então débil autonomia da universidade. Depressa se abriram as portas da crise: encerramento de instalações, presença e repetidas cargas da polícia de choque na cidade universitária, maciças concentrações de protesto de estudantes no Estádio Universitário (a que inesperadamente se juntaria o reitor Marcelo Caetano) e na Alameda da Universidade, um justamente famoso jantar de confraternização de estudantes e alguns professores, por convite pouco antes feito pelo reitor devido ao fecho da cantina, o qual originaria nova carga e consequentes correrias. De tanta inabilidade de um governo acossado, surgiria uma inédita unidade de estudantes e professores: demissão do reitor e dos diretores da Universidade Clássica; comunicado do Senado (apenas formado por docentes) defendendo a autonomia universitária; e a decisão, com o magnífico apoio de Coimbra, de iniciar o luto académico. A crise, entre recuos, faltas de palavra e endurecimento do governo, persistiria até julho, e, na barricada universitária, as associações, sob a coordenação da RIA, iriam atravessar dias arrebatados, numa febril cooperação e capacidade organizativa cuja eficácia ainda hoje me surpreende. Foi um tempo repartido por reuniões pela madrugada fora; pela desmontagem das notas oficiosas através de comunicados informativos que a PIDE nunca conseguiu calar; por experiências de alguma incipiente clandestinidade e encontros vagamente conspirativos; pela mobilização de apoios de intelectuais e artistas; e, para vários, o primeiro contacto com a prisão.
Que pedíamos, afinal? Um diálogo sobre a liberdade de pensamento e ação; a real autonomia das universidades; a revogação do estatuto universitário castrador do livre associativismo; um acesso à universidade sem discriminações económicas, políticas, religiosas ou rácicas; uma orgânica universitária com presença dos alunos nos órgãos de gestão.
Passados estes 50 anos, podemos orgulhar-nos de ter encetado a defesa de um caminho que sabíamos se encontrava do lado certo da história. Os fundamentos essenciais dessa universidade que havíamos sonhado são hoje, afinal, os pilares que as instituições universitárias defendem como cioso património, por deles depender a sua manobra de ajustamento a um mundo asperamente mutável e competitivo.
Há 50 anos, separava-nos da livre Europa um regime cada vez mais isolado na sua teimosa resistência à realidade histórica. Olhávamos, então, com inveja para a outra Europa que começara há pouco o seu projeto de integração, paz e prosperidade. A ela chegaríamos uma vez alcançada a democracia, e hoje nela partilhamos as angústias de uma crise que põe em risco os fundamentos políticos e éticos da mais relevante iniciativa diplomática dos nossos dias a que tanto aspirámos.
Olho de novo para trás e para o tempo que hoje celebramos. Insensivelmente, chegam-me rostos, alguns de amigos já desaparecidos, inflamadas discussões, entusiasmos, receios, uma ou outra utopia. Procuro lembrar a extensa contabilidade dos colegas a que a repressão interrompera a normalidade das suas vidas: expulsando das universidades, detendo, embarcando para a guerra colonial ou forçando ao exílio. Bem como, afinal, os momentos vividos há 50 anos, pois deles ficaram amizades, lições e a certeza de que fizemos algo de útil.


Jorge Sampaio (condensação de artigo no “Expresso” de 17.3.2012)

Sem comentários:

Enviar um comentário