segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O património popular, a tradição e o progresso


PATRIMÓNIO IMATERIAL, PATRIMÓNIO INVISÍVEL, PATRIMÓNIO POPULAR, TRADIÇÃO...

Estes são qualificativos para qualquer coisa que é depreciada, que não brilha, que não é abrangida pelas campanhas de promoção e de recuperação de um certo legado cultural.

A associação ALDRABA, ao constituir-se em 2005, decidiu chamar a si a referência ao património popular, isto é, aos elementos que, no seu entender, costumam materializar uma atitude de ignorância, de desprezo, de arrogância, da parte dos poderes instituídos, dos “cultos”, dos “entendidos”, relativamente às tradições, aos usos e costumes, à cultura das populações.

Aldrabas, batentes, cataventos, ex-votos, chocalhos, pregões, bonecos de madeira, platibandas, cante, morábitos, doçaria, fontes, jogos, moinhos, empreita, tecelagem, e tantos outros objectos, realidades e usos, são exemplos do que se acabou de descrever. No entender da ALDRABA, carecem de ser valorizados e promovidos.

Será populismo? Demagogia barata? Tradicionalismo acrítico?

Julgamos que não.

Mas temos o dever intelectual de nos questionarmos, de procurar encontrar um conceito que seja sustentado, que possa ajudar a armar os activistas e simpatizantes da ALDRABA contra a oposição dos que, por interesse ou por falta de esclarecimento, se atravessam no seu caminho.

Pretendo dar, para isso, um contributo pessoal, não assente em elaborações académicas (para as quai não tenho qualificações) nem em especulações político-ideolõgicas (para as quais me falta a paciência). Um contributo assente, isso sim, na reflexão e na luta cívica.


TRADIÇÃO VERSUS PROGRESSO

Sabemos alguns – os que tiveram oportunidade de aceder aos rudimentos da língua latina, que está na raiz da língua portuguesa moderna – que o termo “tradição” provém do vocábulo latino “traditio”, que significa aquilo que se entrega, que se transmite de pessoa para pessoa, de geração para geração.

Assim, constituem a tradição todas aquelas realidades materiais ou imateriais, que passam de pais para filhos em qualquer sociedade e que, de alguma forma, integram a identidade de uma certa colectividade humana.

A tradição é “boa” ou é “má”, está voltada para o progresso ou constitui uma amarra ao passado?

Esta é uma falsa questão – digo eu!

Serão “progressistas” todas as referências, todos os elementos culturais que impulsionem os grupos humanos a resolver os seus constrangimentos, a alcançar melhores níveis de educação, de cidadania, de liberdade, de conforto e, numa palavra, de felicidade.

Serão “conservadores”, ou “reaccionários”, aqueles elementos que impeçam as sociedades de evoluir, que justifiquem a ausência de instrução, que legitimem a superstição e o fatalismo, que levem as pessoas a aceitar a opressão e a tirania.

Neste ponto, interessa realçar que o património popular é intrinsecamente dinâmico. Porque, habitualmente, este património é informal, não está cristalizado em edificações físicas nem em códigos jurídicos. Ele representa a capacidade das populações de reagirem às dificuldades, às adversidades, de encontrarem uma “saída” para as “portas fechadas” que os elementos naturais ou a organização social dominante lhes põem à sua frente…

É aqui que se coloca a interrogação: nesta dicotomia, aparentemente tão simples, entre o “progressista” e o “reaccionário”, como é que a tradição e o património popular se situam?

No Portugal do século XX – que experimentou o fim de um regime senhorial corrupto, deposto em 1910, que viveu 16 anos de um liberalismo divorciado das populações do país profundo, que teve depois 48 anos de um sistema autoritário, opressivo e retrógrado, e que finalmente retomou o gosto da liberdade, da democracia e do risco a partir de 1974 –o que significava a “tradição”?

Consoante os intervenientes, a tradição e (acrescento eu) o património popular representavam o saudosismo de um país rural e submisso, que era enaltecidos pelos derrotados do 5 de Outubro de 1910 e do 25 de Abril de 1974, ou, inversamente, constituíam o paradigma da resistência à modernidade e ao progresso, e eram diabolizados pelas forças políticas que reivindicavam o exclusivo da representação do Portugal do futuro…

Para alguns destes últimos, os tais que pretendiam ser representantes exclusivos do futuro do país, a tradição significava aceitação passiva da organização social anterior, ou da correlação de forças favorável ao statu quo ante. A religião, os ritos, a superstição, seriam a expressão mais acabada do reaccionarismo. Ou não será assim?


O PATRIMÓNIO POPULAR É PROGRESSISTA…

Pois eu tenho o atrevimento de afirmar: o património popular é “progressista”, a recusa das tradições é que é “reaccionária”!

Para mim, e seguramente para muitos outros companheiros, o conhecimento e a valorização das referências de cada colectividade local é indispensável para a sua autoestima, para o seu amor próprio, ou seja, para a sua identidade. Quem diz identidade, diz coesão, diz capacidade de reacção ao exterior.

Estaremos, com isto, a procurar legitimar as colectividades fechadas sobre si mesmas, que julgam ser auto-suficientes e que desprezam os contributos do exterior?

De modo nenhum!

Bem pelo contrário, o que se pretende sustentar é que uma colectividade sem identidade, num mundo globalizado e em que se esmagam as diferenças, essa sim, está imediatamente condenada. Condenada a consumir tudo o que lhe ponham à frente, condenada a não contribuir com a sua experiência própria para o conjunto. Em resumo, condenada a desaparecer…

Quem perde nesses casos? Perde a colectividade que desaparece, e perde a sociedade global que não aproveita os saberes daquele grupo concreto! Ou seja, sai vitoriosa a perspectiva “reaccionária”.

Uma colectividade local sem autoestima, para a qual os usos e costumes sejam vivenciados como coisa dos velhos sem instrução, está completamente nas mãos dos “media” e da oferta comercial propriamente dita. Não só não consegue reagir aos eventuais abusos da oferta como, pior ainda, está impedida de dar contributos próprios para o modelo cultural global.

Quem ganha? Ganha o modelo do “pensamento único”, homogéneo e redutor, em que a diversidade cultural não tem lugar. Por outras palvras, prevalece mais uma vez o conservadorismo, perde o progresso.


EM CONCLUSÃO

Estaremos contra o culto primário do passado?
Estaremos contra as convicções pré-científicas que deificam a supremacia dos ricos que humilham os pobres?
Estaremos contra o obscurantismo dos que querem convencer as pessoas “menos letradas” a delegar a defesa dos seus interesses nos “mais cultos”?
Estaremos contra os rituais mágicos que confiam a resolução das doenças e do infortúnio á invocação dos espíritos, em vez da correcção objectiva das causas desses males?

Estamos, com toda a certeza, contra tudo isso!

Precisamente por essa razão, somos a favor da cultura popular, somos a favor de todas as formas de expressão caldeadas pelo sofrimento, pela experiência, pelos saberes familiares e profissionais, e até (por que não dizê-lo?) pela arte de fingir, pela manha de enganar os poderosos…

Por isso proclamamos, com energia: Viva o património popular!

Lisboa, 31/7/2007
José Alberto Franco
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"A ALDRABA"
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COMENTÁRIOS
oasis dossonhos disse...
A primeira reacção que tenho é de aplauso, por te transcenderes e propores esta reflexão pública, que acho muito interessante. Valia a pena, de facto, que toda a gente envolvida na Aldraba e fora dela, que quisesse envolver-se neste debate, aparecesse e deixasse o seu contributo.
Vou entretanto ler com mais atenção, pois um texto deste merece efectivamente esse cuidado.
Obrigado por este momento!
Abraço
Luís
QUINTA FEIRA, AGOSTO 09, 2007 12:11:00 PM

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