quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Os cheiros e outras memórias do Natal português

Um texto maravilhoso que a nossa amiga Ana Marta Nobre (natural do Sobral da Adiça e trabalhadora da Câmara Municipal de Moura, que já publicou um poema seu na revista "Aldraba" em 2013) divulgou ontem e que aqui reproduzimos com todo o gosto:

O Natal regressa sempre pela via mais antiga da memória: o olfacto. Antes da palavra, antes da imagem, é o cheiro que anuncia a infância — essa pátria primeira onde o tempo parecia deter-se. A casa respirava de outro modo em dezembro. Havia no ar uma gravidade doce, feita de frio e de expectativa, como se até as paredes soubessem que algo essencial se aproximava.

O frio, sim, tinha cheiro. Um frio limpo e presente, que entrava cedo na casa e a obrigava ao recolhimento. Era um frio que avivava os sentidos, tornava os gestos mais atentos e fazia do interior um refúgio necessário. Nesse frio, a memória aprendia a escutar.

Na cozinha, coração silencioso do Natal, os cheiros organizavam-se como uma liturgia antiga. A canela erguia-se no ar com autoridade serena, misturada com o açúcar e o leite das farófias, leves e contidas, repousando em travessas fundas. O frango acerejado libertava um perfume denso e grave, onde o tempo tinha sido ingrediente, e a carne de caça trazia consigo um odor profundo, quase ancestral, lembrando que cozinhar era, antes de tudo, um acto de permanência.

E depois vinham os doces que eram herança e gesto repetido. As fatias paridas, embebidas e quentes, guardando no interior a doçura lenta do leite e da canela. As filhoses, feitas pelas mãos sábias da avó Luísa, cheirando a massa viva, a açúcar e a tradição transmitida sem palavras. O nógado repousava sobre folhas de laranjeira, onde o mel se encontrava com o verde fresco das folhas, num equilíbrio silencioso, quase solene.

A infância habitava esses cheiros sem necessidade de os nomear. Sabia apenas que eram sinal de pertença, de continuidade, de um mundo ordenado por rituais simples e repetidos. Cada aroma era uma promessa: de mesa cheia, de vozes cruzadas, de um instante suspenso antes da consoada, quando o tempo parecia reconciliar-se consigo próprio.

Talvez por isso o Natal nunca seja apenas uma data. É uma geografia sensível, feita de casas fechadas ao frio, de cozinhas em murmúrio, de cheiros que persistem. E é, sobretudo, esse lugar invisível onde a infância permanece — intacta — pronta a regressar ao primeiro sopro de canela no ar.

Ana Marta Nobre, 23/12/2025

 







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