O Natal regressa sempre pela via mais antiga da memória: o
olfacto. Antes da palavra, antes da imagem, é o cheiro que anuncia a infância —
essa pátria primeira onde o tempo parecia deter-se. A casa respirava de outro
modo em dezembro. Havia no ar uma gravidade doce, feita de frio e de
expectativa, como se até as paredes soubessem que algo essencial se aproximava.
O frio, sim, tinha cheiro. Um frio limpo e presente, que
entrava cedo na casa e a obrigava ao recolhimento. Era um frio que avivava os
sentidos, tornava os gestos mais atentos e fazia do interior um refúgio
necessário. Nesse frio, a memória aprendia a escutar.
Na cozinha, coração silencioso do Natal, os cheiros
organizavam-se como uma liturgia antiga. A canela erguia-se no ar com
autoridade serena, misturada com o açúcar e o leite das farófias, leves e
contidas, repousando em travessas fundas. O frango acerejado libertava um
perfume denso e grave, onde o tempo tinha sido ingrediente, e a carne de caça
trazia consigo um odor profundo, quase ancestral, lembrando que cozinhar era,
antes de tudo, um acto de permanência.
E depois vinham os doces que eram herança e gesto repetido.
As fatias paridas, embebidas e quentes, guardando no interior a doçura lenta do
leite e da canela. As filhoses, feitas pelas mãos sábias da avó Luísa,
cheirando a massa viva, a açúcar e a tradição transmitida sem palavras. O
nógado repousava sobre folhas de laranjeira, onde o mel se encontrava com o
verde fresco das folhas, num equilíbrio silencioso, quase solene.
A infância habitava esses cheiros sem necessidade de os
nomear. Sabia apenas que eram sinal de pertença, de continuidade, de um mundo
ordenado por rituais simples e repetidos. Cada aroma era uma promessa: de mesa
cheia, de vozes cruzadas, de um instante suspenso antes da consoada, quando o
tempo parecia reconciliar-se consigo próprio.
Talvez por isso o Natal nunca seja apenas uma data. É uma
geografia sensível, feita de casas fechadas ao frio, de cozinhas em murmúrio,
de cheiros que persistem. E é, sobretudo, esse lugar invisível onde a infância
permanece — intacta — pronta a regressar ao primeiro sopro de canela no ar.
Ana Marta Nobre, 23/12/2025

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