No ano de 2019, é hoje, 30 de maio (40 dias depois da Páscoa), que se comemora a festa popular do "Dia da Espiga", que nos países de tradição católica coincide com o evento litúrgico da 5ª Feira da Ascensão de Cristo.
A ALDRABA assinala esta data de tão belas raízes reproduzindo o artigo que, sobre esta temática, vai sair no nº 25 da revista, atualmente no prelo:
Quinta-feira de Ascensão, um dia fasto e
de festa
Esta quinta-feira de primavera, que fecha o ciclo de
quarenta dias aberto pela Páscoa, é, ainda hoje, apesar da crescente
descaracterização do mundo rural, um dos dias mais sagrados do calendário das
gentes das aldeias e vilas do interior do país.
É, nitidamente, um dia fasto, um dia favorável, como o
são também, por exemplo, a segunda-feira de Páscoa[1], a
segunda-feira de Pascoela (de Sestas[2] na
Chamusca) ou o 1.º de maio – todos eles dias de ir passear ao campo, festejar a
primavera e louvar a natureza.
Em muitos sítios do país, especialmente no sul que é
zona de mais vastos trigais e de mais vincadas tradições mediterrânicas, o povo
chama-lhe quinta-feira da Espiga – e este nome assenta-lhe bem. De facto, mais
do que a festa religiosa da ascensão de Cristo, o que o povo espontaneamente
celebra é o amadurecimento das searas, colhendo espigas e outros elementos
vegetais para compor um ramo que, guardado em casa, há de dar fartura de pão e
outras importantes venturas até à Ascensão que vier.
A interligação das duas práticas, religiosa e profana,
nesta quinta-feira festiva, explica-se, para além das razões já referidas, pelo
facto de, nos primeiros séculos do cristianismo, ser hábito, em dia de
Ascensão, proceder-se à bênção dos primeiros frutos. Daí ter ficado o costume
ritual de sair ao campo, nesse dia santificado, para recolher o raminho que,
pelo simples facto de ser composto nesse dia, ficava bento e portanto se lhe atribuíam virtudes benfazejas e se guardava
em casa como amuleto.
A apanha da espiga raramente é um ato solitário. Em
tempos ainda não muito distantes, saía-se ao campo em ranchos, sobretudo de
rapazes e raparigas, mas que integravam também gente de todas as idades, incluindo
crianças e velhos. Levava-se o farnel, que se partilhava à sombra das árvores
mais frondosas e então colhiam-se as várias espécies para compor, com arte e
afeto, o raminho benfazejo.
A ocasião era propícia, com frequência, ao despontar
de sentimentos entre moços e cachopas, trocas de espigas e de olhares em tarde
de maio quente que depois davam namoro e muitas vezes ligações para a vida
inteira.
Fazia-se roda, contavam-se histórias, desfiavam-se
cantigas e dançava-se ao toque da concertina ou de outro instrumento que alguém
levasse e soubesse tocar.
O ramalhete da espiga não tem uma composição fixa,
variando muito de região para região e até de uma terra para a outra. No
entanto, há elementos que surgem quase sempre e que encerram uma simbologia
especial. Em vários locais do Ribatejo colhem-se habitualmente três[3]
espigas de trigo (e/ou de cevada e/ou de centeio), três malmequeres amarelos
(ou brancos) e três papoilas, mais um raminho de oliveira em flor, um esgalho
de videira com o cacho em formação[4] e um
pé de alecrim ou de rosmaninho florido[5]. As
espigas querem dizer fartura de pão; os malmequeres, riqueza; as papoias, amor
e vida; a oliveira, azeite e paz; a videira, vinho e alegria; o rosmaninho ou
alecrim, saúde e força. Guardado em casa, o raminho da espiga não deve ser
perturbado na sua quietude, sendo substituído apenas no ano seguinte por outro
igual mas mais viçoso.
As tradições rituais da quinta-feira de Ascensão não
se esgotam no passeio ao campo e na apanha da espiga, embora elas sejam, sem dúvida,
as mais emblemáticas e as mais significativas desta festa rural. Há outras,
muitas outras, que se cumpriam e hoje em dia vão desaparecendo, tantas e tão
diversificadas que é praticamente impossível fazer o seu inventário completo.
Convém, contudo, reter três que nos parecem mais interessantes: as que têm a
ver com o pão, com o leite e com a hora do meio-dia.
O pão é o elemento fulcral da economia agrária. Não
apenas o pão propriamente dito, mas o alimento em geral que a palavra pão significa nos meios rurais. A apanha
da espiga, já o dissemos, tem por objetivo mais fundo garantir a sua fartura
nas arcas durante todo o ano. Em algumas regiões do país, também com essa
intenção, parte-se uma fatia de pão, em quinta-feira da Espiga, que se conserva
incorrupto e se guarda religiosamente até à Ascensão seguinte, sendo nessas
alturas comido pelas pessoas da casa. Noutros casos, espeta-se mesmo o raminho
da espiga na fatia de pão, preservando-se ambos juntos para augurar maior
abundância.
O leite é o elemento fulcral da economia pastoril.
Dele dependem, para quem vive dos rebanhos e das manadas, a sobrevivência das
crias, parte importante da dieta humana diária, e o fabrico de derivados de
enorme importância para o grupo, como o queijo, o requeijão e a manteiga. Em
quinta-feira da Espiga, em algumas regiões do país, por onde se conservam ainda
pastagens, gado e tradições, o leite é investido de poderes mágico-religiosos.
Na região de Arronches chega-se ao ponto de chamar a essa quinta-feira o Dia do Leite, havendo o hábito de os
criadores distribuírem o leite ordenhado nesse dia a quem quer que passasse a
pedi-lo. No norte do país, era costume o leite ser oferecido ao abade. Noutros
locais, distribuía-se aos pobres da aldeia, crendo-se que com essa dádiva se
ganharia mais no futuro. Há lugares em que ainda se acredita que o leite da
Ascensão e o queijo que com ele se fabrica têm virtudes benfazejas, livrando de
muitas doenças como as sezões ou o mal da gota.
Se a quinta-feira da Espiga é um dia fasto, a hora do
meio-dia (designada simplesmente a hora)
é considerada o período mais propiciatório. Essa era a hora em que
tradicionalmente a Igreja Católica fazia o serviço religioso próprio da data,
assinalando a ascensão de Jesus ao céu, repicando os sinos no alto das torres.
Esse era o momento indicado na tradição popular para se praticarem todos os
ritos característicos desse dia. Assim, por exemplo, o leite contra as febres e
as dores deveria ser bebido a essa hora por ter efeito mais garantido. Há quem
acredite, com certo enlevo místico, que entre o meio-dia e a uma da tarde os
rios param de correr e a passarada recolhe aos galhos, gorjeando cantos à
Virgem Maria. Uma velha crença chega mesmo a afirmar que é nessa hora bendita
que se cruzam as folhas de oliveira. Por isso, ainda hoje há pessoas que
preferem apanhar a espiga logo a seguir ao meio-dia, confiantes na conjugação
dos efeitos benéficos do raminho e da hora.
Mais do que santificado em memória da ascensão de
Cristo, o dia da Espiga é sagrado em louvor do amadurecimento da natureza. Por
isso, é um dia em que, por definição, não se trabalha e, nos meios rurais,
mesmo não sendo feriado oficial, sempre as pessoas procuraram, pelo menos até
há uns anos, cumprir os rituais da tradição, incluindo o de dedicar o dia por
inteiro à festa e não às tarefas quotidianas.
Em vários concelhos, especialmente do centro e sul do
país, a força do costume, a intensidade dos festejos e o significado do dia
para as populações levaram à adoção da quinta-feira da Espiga como feriado municipal.
São, ao todo, trinta municípios[6], dez
dos quais legalizaram o seu feriado através do mesmo decreto, em maio de 1973[7].
Hoje em dia, com as contínuas e profundas
transformações que se têm dado no mundo rural, a apanha da espiga, embora se
mantenha, é mais simbólica do que nunca. Em alguns casos, assume mesmo
características estritamente folclóricas ou, o que é muito mau, subordina-se ao
consumismo reinante, como acontece em alguns meios urbanos nos quais de vendem
raminhos de espigas pelas esquinas…
São sinais dos tempos que vivemos. Tudo tem,
obviamente, um preço e o progresso
também. Mas será bom não nos esquecermos que, se é certo que o Homem ocidental
depende há mais de cem anos da máquina e da técnica, não é menos verdade que a
Humanidade em geral depende, há mais de dez mil, da agricultura e da natureza.
E há laços que só o tempo é capaz de fazer e de desfazer.
António Matias Coelho
[1] Segunda-feira de Páscoa é dia particularmente festivo,
por exemplo, nos concelhos da Golegã e de Constância: no primeiro realiza-se a
Festa das Bateiras, na Azinhaga; no segundo a Festa de Nossa Senhora da Boa
Viagem – uma e outra de grandes e significativas tradições.
[2] A segunda-feira de Sestas era, no meio rural, o dia em
que, devido ao crescimento do dia solar e ao aumento do calor à tarde, se
passava do regime de trabalho de inverno para o de verão, introduzindo-se um
período mais dilatado de paragem para a refeição do meio-dia que permitia
dormir uma sesta à sombra pela hora de maior calor, despegando-se depois mais
tarde ao fim do dia. Na segunda-feira de Pascoela, por ser o primeiro dia desta
prática, era costume os patrões darem a tarde inteira aos trabalhadores que a
aproveitavam para festejar, no campo, até ao anoitecer. Na vila da Chamusca,
para dar um exemplo, o monte do Bonfim era o local mais frequentado pelos que
assinalavam as sestas de forma festiva. Trata-se de uma (mais uma…) tradição
que, infelizmente, está em vias de passar ao completo esquecimento.
[3] No ramo, as espigas e os outros elementos podem ser
um, três ou cinco de cada, mas sempre em número ímpar.
[4] Este costume de colher ramos de oliveira em flor e
vides com cachos de uva em formação deu azo, em tempos idos, a muitos protestos
de agricultores que, em quinta-feira da Espiga, viam os seus olivais e vinhedos
invadidos por ranchos de gente que lhes mutilava os frutos antes de tempo…
[5] O raminho da espiga, consoante os locais, pode
compreender vários outros elementos, de significado menos preciso, integrados
muitas vezes apenas para compor o ramalhete. São os casos, por exemplo, das
margaridas, das campainhas, das rosas e até das favas.
[6] São os seguintes os trinta concelhos portugueses que
têm a quinta-feira de Ascensão como feriado municipal: Melgaço, Oliveira do
Bairro, Anadia, Mealhada, Mortágua, Marinha Grande, Ansião, Alvaiázere,
Alcanena, Torres Novas, Golegã, Chamusca, Almeirim, Salvaterra de Magos,
Benavente, Cartaxo, Azambuja, Alenquer, Arruda dos Vinhos, Sobral de Monte
Agraço, Mafra, Vila Franca de Xira, Alter do Chão, Estremoz, Arraiolos, Alvito,
Vidigueira, Castro Verde, Monchique e Loulé.
[7] Decreto n.º 262/73, de 26 de maio, que consagrou o dia
de quinta-feira de Ascensão como feriado municipal dos concelhos de Alter do
Chão, Ansião, Arraiolos, Arruda dos Vinhos, Cartaxo, Chamusca, Mafra, Marinha
Grande, Mortágua e Salvaterra de Magos.
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