terça-feira, 4 de agosto de 2015

Acerca do gaspacho

Nestes dias do ano, um bom prato de gaspacho faz as delícias das gentes do sul do nosso país.

Sobre o gaspacho, recuperamos aqui um excerto de um artigo publicado, em outubro de 2012, no nº 12 da revista ALDRABA, pela nossa amiga Susana Gómez Martínez, arqueóloga espanhola há longos anos radicada em Mértola:

"...o Património Ibérico sustenta-se pela indiscutível realidade física que é a própria Península. É certo que esta quase ilha alberga uma enorme quantidade de unidades geográficas e culturais nas mais diversas escalas; mas não é menos certo que, desde a Antiguidade, a sua existência é reconhecida por geógrafos e historiadores. As condicionantes climáticas, geológicas, topográficas ou biológicas (entre outras muitas) proporcionam aos habitantes da Península Ibérica um conjunto de recursos que são a matéria-prima com que se vão construindo costumes, saberes e, claro está, também monumentos e obras artísticas.

Mas esta realidade física incontornável é moldada pelo outro eixo que governa a nossa existência, a História. Espaço e tempo são dois dos ingredientes fundamentais da vida. Se olhamos a História comum numa perspectiva longa, os grandes processos históricos, que condicionaram a nossa existência actual, decorreram sem olhar a fronteiras que, em alguns casos, só foram criadas muito depois e, em outros, não foram obstáculo para o seu desenvolvimento. Se obviamos os fenómenos pontuais e recentes, e procuramos uma história mais económica e social (hoje em dia muito pouco na moda) e menos política e conjuntural (especialmente quando nos centramos no mundo rural em vez de nas realidades urbanas mais sujeitas à mudança e às influências exteriores), as tradições musicais, os costumes alimentares ou os saberes artesanais são muito semelhantes, frequentemente idênticos.

Pensemos no gaspacho. Em quase toda a Espanha e grande parte de Portugal, é o prato do verão e do calor. Claro que o gaspacho alentejano não é igual ao gazpacho andaluz, mas também é diferente o gazpacho que fazia a minha mãe, do gazpacho da sua vizinha. Mesmo na Andaluzia, existe também o gazpacho blanco, o salmorejo e outras muitas “sopas” cruas e frias. No fundo, o importante no gaspacho não é a receita exacta, mas o saber conjugar produtos da estação para confecionar um prato fresco e apetecível num dia abrasador.

Nos saberes artesanais e nas tradições populares encontramos, também, inúmeros elementos comuns por todo o território da Península Ibérica, mas também inúmeros matizes e pequenas e grandes adaptações aos recursos e condicionantes da região. Será a importância dada às semelhanças ou as diferenças o que nos aproxime de um Património Ibérico ou nos afaste em direcção aos patrimónios nacionais, regionais ou locais. Mas, na minha opinião, esta afirmação não é exacta: do mesmo modo que as identidades são acumulativas, também o Património pode ser sentido cumulativamente. É por isso que faz sentido a existência de um Património da Humanidade e que pode doer-nos a alma quando um monumento é destruído no outro lado do planeta ou quando desaparece uma língua em um outro continente.

O Património tem uma componente importante de sentimento e só se conserva, para além do que é útil, o que se conhece e se quer. Por isso, para que um Património Ibérico exista terá de haver gente que o conheça, que o use e que o ame".

Susana Gómez Martínez

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