Pré-publicação do artigo do nosso amigo Appio Sottomayor, que vai sair no nº 16 da revista ALDRABA, cuja apresentação pública terá lugar no próximo dia 29 de novembro:
Comecemos por uma verdade que La Palisse não desdenharia: todos os dias lidamos com a toponímia, sem nos preocuparmos muito com o seu conteúdo e o seu significado. Na verdade, a situação mais vulgar é que cada um de nós viva numa casa que ostenta um número dito “de polícia” e se situa num arruamento com um determinado nome. No entanto, sejamos francos, não serão muitas as vezes em que paramos para pensar sobre as razões pelas quais aquela rua se chama assim e a outra aonde nos dirigimos tem outra designação. E afinal, sobretudo quem habite numa grande cidade viverá rodeado de indicações toponímicas.
Sendo pois uma realidade que nos cerca, não é fácil, contudo, caracterizá-la através de uma concepção rígida de origens. Modernamente, a prática mais habitual é consagrar nas ruas nomes de pessoas, em jeito de homenagem. Mas os critérios têm sido os mais variados, ao longo dos tempos. Não é possível também fixar uma época, apontando-a como sendo a dos primórdios da toponímia. Desde a mais remota antiguidade, o ser humano terá tido necessidade de se referir a determinados locais e de os qualificar, para deles poder dar testemunho a outras pessoas e para se orientar.
Reportemo-nos a Lisboa. Uma das primeiras tendências terá sido a de fixar nomes através de quaisquer características geográficas. E o certo é que muitas dessas designações primitivas acabaram por se perpetuar. Por exemplo: continuamos a chamar “Lapa” a um bairro que foi assim baptizado por causa de uma enorme pedra que dominava os terrenos em roda.
Como falamos da Penha ou da Achada, sem cuidar muito de pensar que nos referimos a uma elevação ou a uma pequena planície a meia encosta... Ou como, lembrando cursos de água ou nascentes, continuamos a usar topónimos como Águas Boas, Rego, Ribeira, Arroios, Rio Seco, Sete Rios, Poço do Chão, Poço do Bispo, Poço da Cidade...
Também a existência predominante de certo tipo de plantas ou de culturas serviu longamente para identificar lugares. Onde predominava a giesta nasceu o Giestal, onde havia um campo de juncos a Junqueira... Os olivais e oliveiras cobriam boa parte do que é hoje a cidade, pelo que os seus nomes aparecem na populosa freguesia na parte oriental da cidade, mas também nos Prazeres, na Graça, em Carnide, ou até num larguinho que fica a meio da Calçada da Glória. Mesmo os terrenos onde a vegetação não seria muito abundante deram azo a topónimos, como a Charneca ou a Horta Seca.
Até a existência de certas particularidades do terreno podia servir de causa de topónimos – as Pedras Negras, as Furnas, a Boa Vista, a Bela Vista... O mesmo se diga da existência de um mineral – o Salitre... Ou de locais de trabalho que iam aparecendo e dando brado – os Moinhos, o Forno, os Lagares, as Olarias...
O facto de algumas personalidades consideradas de maior destaque irem residir em determinado local foi também causa do aparecimento de alguns topónimos, sem que fosse então necessário especificar a quem se referiam. Temos, por exemplo, a Calçada do Duque, a Rua do Prior ou a Rua do Cura. No primeiro caso, foi relativamente fácil concluir que se tratava do Duque de Cadaval, cujo palácio ficava junto do Rossio e cujas terras se estendiam pela encosta. Mas, quanto ao cura e ao prior, seriam por certo eclesiásticos muito importantes em certa época – tanto que nem houve necessidade de se dizer de quem se tratava.
A existência de múltiplas igrejas, capelas e conventos serviu também de óbvia razão para criar topónimos. Hoje, para explicar muitos deles, tem de se recorrer à História. Só assim se perceberá porque há uma rua de S. Pedro ou um largo de S. Rafael em Alfama: lembram ambos antigas igrejas que entretanto desapareceram. O mesmo se diga dos Brunos, dos Barbadinhos, das Francesinhas, das Trinas e de mais alguns, que lembram antigos conventos que existiam naqueles locais.
ATÉ AS ALCUNHAS E OS CONSTRUTORES
A imaginação ou o sentido prático não tinham limites apertados. Daí que até algumas alcunhas ou mesmo defeitos físicos de moradores em certo arruamento acabarem por lhe dar o nome. Assim, existiu há muito na Ajuda uma loja de ferro-velho. O povo chamava-lhe o ferrugento. Como o proprietário morresse e ficasse a viúva a gerir, a Ferrugenta ganhou foros de personalidade e ainda hoje lá existem a travessa e o beco da Ferrugenta. Quanto a defeitos físicos, lembremos apenas o Pé de Ferro ou o Braço de Prata, casos em que as próteses usadas deram origem a topónimos.
Em tempos da reconstrução de Lisboa após o terramoto, surgiu também a consagração de algumas actividades e profissões em ruas da cidade, geralmente naquelas onde eles se agrupavam. O hábito ficou e chegou até à Primeira República. O próprio Marquês de Pombal fez o seu agradecimento aos comerciantes, chamando Praça do Comércio ao velho Terreiro do Paço. Mas lá foram surgindo, nas esquinas das ruas, placas que consagravam os Sapateiros, os Fanqueiros, os Douradores, os Bacalhoeiros, os Correeiros...
Não deixa de ser curiosa e digna de realce uma forma de toponímia com que talvez quase ninguém contasse – a não ser os próprios interessados. Foi o caso de alguns construtores civis que, tendo edificado bairros maiores ou menores, fizeram questão de ficar perpetuados nas ruas onde tinham trabalhado. E conseguiram. O mais conhecido será o Senhor Andrade.
Encarregou-se ele de dirigir a construção de boa parte do bairro dos Anjos. E não hesitou em dar a algumas ruas os nomes de familiares e o dele próprio. Temos assim a Rua Andrade, a Rua Maria Andrade, a Rua Palmira... Outro, o senhor Lopes, que andou azafamado na zona do Alto de S. João, lá tem a sua Rua Lopes e o pequeno Bairro Lopes. Também o senhor Santos, construtor de prédios no Rego, teve a habilidade de fazer com que se passasse a chamar ao local o Bairro Santos – o que, diga-se num parêntese, dá por vezes lugar a confusões, já que alguns lhe chamam “bairro de Santos”, o que poderá levar a pensar na Madragoa...
O PODER MARCA POSIÇÃO
No entanto, este uso, essencialmente popular e espontâneo, de dar nomes às ruas de Lisboa começou a sofrer alterações logo após o terramoto de 1755. A autoridade decidiu intervir na toponímia e, embora mantendo e respeitando muitas designações tradicionais, não se dispensou de publicar um decreto em 5 de Novembro de 1760, que veio dar nome a 14 ruas da Baixa, recém-reconstruída.
Parece que o Poder tomou o gosto à prática de regular os nomes das artérias da cidade. A seguir ao referido decreto, não se registaram alterações notáveis. Mas logo no início do século XIX apareceram as primeiras normas, tentando regularizar nomes e locais, sobretudo para uso dos ainda incipientes Correios. Em 1836, o Governo Civil de Lisboa publicou diplomas sobre a atribuição de topónimos, que lhe ficava reservada. Em 1859, o mesmo Governo Civil reafirmou a sua autoridade na matéria, dando-se como única entidade competente para dar nomes às ruas ou modificá-los.
Com a entrada em vigor do Código Administrativo, em 1878, as coisas mudaram. A competência da atribuição de topónimos passou a ser da Câmara Municipal, prática que se mantém até hoje. Tal não impede que, às vezes (raras, diga-se) sejam outras entidades a “baptizar” as ruas, sem darem prévio conhecimento à edilidade. O exemplo mais evidente será o da Expo-98, durante a qual se deram nomes a arruamentos onde se registaram desde duplicações (caso de Fernando Pessoa) até designações um tanto insólitas (Sandokan e outros).
MUDANÇAS
A prática de dar às ruas nomes de pessoas generalizou-se entretanto, sobretudo desde a I República. As razões são fáceis de perceber: tudo quanto evocasse ou fizesse lembrar a Monarquia seria prontamente substituído. E, por arrastamento, as designações de carácter religioso seguiriam o mesmo caminho. A Rua do Príncipe passou a Primeiro de Dezembro, a Avenida D. Amélia foi crismada de Almirante Reis, a Ressano Garcia mudou para República – e por aí fora. Da mesma forma, S. José dava lugar ao jornalista Alves Correia, S. Lázaro ficou a chamar-se 20 de Abril – tudo mudado.
Veio o Estado Novo e algumas designações tradicionais voltaram aos seus antigos lugares, sem que, em boa verdade, se registassem grandes apagamentos, já que os nomes substituídos, na maior parte dos casos, se limitaram a mudar de sítio. O Rato, por exemplo, voltou às placas, acabando a Praça do Brasil, já que este país passou a ter avenida. O Presidente Wilson mudou de bairro e a avenida onde estava voltou a chamar-se de D. Carlos.
Chegado o 25 de Abril, não se registaram mudanças de topo. Obviamente, a Avenida 28 de Maio mudou de nome e passou a ser das Forças Armadas. E pouco mais! Foi maior a preocupação de apor nomes a ruas novas.
Chegamos à actualidade. Surgiram, durante alguns anos, muitas ruas novas. Mas não as suficientes para a verdadeira febre que muitas vezes se apossa de muitos cidadãos. Na Comissão Municipal de Toponímia, foi utilizada a expressão “síndrome de funeral”, para caracterizar alguma prática que é seguida: morre determinada pessoa e os seus familiares ou amigos logo pensam em homenageá-lo através da atribuição do seu nome a uma rua.
Fervilham por isso na Comissão, na Assembleia Municipal e na Câmara catadupas de nomes propostos para passarem a figurar nas esquinas. Ora não há ruas que cheguem! Parece que terá de haver novas formas de homenagem.
A Comissão acima referida foi criada em 1942 como órgão consultivo, pronunciando-se sobre a criação ou alteração de topónimos. A sua composição tem sofrido alterações ao longo dos tempos e ainda recentemente foi alvo de nova remodelação. Entretanto, foram aprovadas normas que constituem como que um regulamento. Na sua essência, trata-se de consagrar princípios que a Comissão há muito vinha defendendo. É o caso, por exemplo, da não concordar com mudanças de topónimos. Na verdade, a toponímia poder considerada como uma espécie de compêndio de História – e nesta não devem ser riscados capítulos. E, para além deste argumento de ordem histórica, acresce um motivo mais material: quando muda o nome de uma rua, os respectivos moradores têm de, à sua custa, alterar a sua documentação!
Outra norma que já vinha sendo seguida e agora ficou consagrada foi a da necessidade de deixar passar um prazo razoável entre a morte de alguém e a atribuição do topónimo.
É preciso que, passados anos, a figura destacada continue a ser lembrada e a serem reconhecidos os seus feitos. Acabar-se-á assim com o tal “síndrome de funeral” atrás referido.
Com todos estes cuidados, vai sendo possível manter algumas relíquias nos letreiros da cidade, para que verifiquem os actuais cidadãos e os vindouros a extraordinária imaginação de quem deu nomes às nossas artérias. A começar pelos designativos. Poucas cidades poderão gabar-se de ter avenidas, ruas, travessas, azinhagas, becos, alamedas, boqueirões, calçadas, calçadinhas, campos, escadinhas, jardins, largos, pátios, praças, regueirões, telheiros, vilas – e não se pretende aqui esgotar o tema. Mas, achando pouco, Lisboa ainda arranjou forma de criar uns tantos sítios que não têm designativo nenhum: as Escolas Gerais (há rua e há sítio), o Poço do Borratém, a Costa do Castelo, o Caracol da Graça, a Triste Feia... “Ruas que o não são” – lhes chamei, em publicação que a Câmara editou.
A toponímia lisboeta dá, de facto, para tudo. Até para consagrar virtudes (Fé, Esperança, Caridade...), lembrar as flores (o Jasmim, as Violetas, a Rosa, os Cravos...) e arranjar uma fórmula poética e química para dar nome a uma travessa: a Água de Flor!
um homem que é uma referênia para a história de Lsboa
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