Como escrevemos neste blogue em junho último, Jaime Gaspar Gralheiro, homem de grande energia e fortes convicções, advogado, dramaturgo e encenador de São Pedro do Sul, deixou-nos nessa altura, vitimado por doença aguda.
Amigo pessoal de alguns de nós, tinha-se tornado também amigo da ALDRABA, para cujo número da revista publicado em abril de 2014 escreveu o artigo "Teatro popular nas Beiras".
A ALDRABA participou na cerimónia fúnebre, realizada no Cine-Teatro Jaime Gralheiro, onde centenas de pessoas lembraram de forma muito emocionada a vida e o exemplo deste homem, inteiramente dedicado à sua terra e às suas gentes.
Entre os que usaram da palavra nessa sessão, destacaram-se algumas individualidades, dois membros do grupo cénico da Universidade Sénior de São Pedro do Sul, e o filho João Carlos, com um testemunho genial de homenagem ao percurso do pai.
Esse testemunho consistiu numa peça ficcional, que o João Carlos nos cedeu, e que vai sair no nº 16 da nossa revista, a ser publicada em finais do corrente mês de outubro:
Quando andava a cumprimentar todos os que tiveram a amabilidade de vir para se despedirem de meu Pai, o meu telemóvel tocou. Era um número estranho. Nunca o tinha visto. Era capaz de ser mais um amigo ou conhecido a dar os pêsames pela partida, a desejar força nesta hora de amargura.
Atendi a chamada:
- Estou sim?
Respondeu-me uma voz longínqua e com forte sotaque:
- Alô. Joao Carlos Graleiro?
- Sim. João Carlos Gralheiro. Quem fala? Que deseja?
- Karl Marx.
Estupefacto, respondi: - Quem?
- Karl Marx, responsável politique do ceo…
Ouve-se uma voz do outro lado:
- Do Céu, camarada Marx. Do céu. Não é do ceo…
- Ok. Do céu dos Comuniste.
Assarapantado pergunto:
- Que deseja?
- Tengo aqui uma camada … não, chamada em lina, iporta águardarr?
Em vez daquelas melodias horríveis que temos de ouvir nestas circunstâncias, surge o belo poema de José Gomes Ferreira genialmente musicado por Fernando Lopes Graça: “Acordai…”
- Estou? Filho? Estás a ouvir-me?
A minha mãe?!...
- Mãe. És tu?
- Sim, filho. Sou eu.
- O que é que se passa?
- Liguei para te dizer que já estive com o teu Pai. Ele está agora a tratar de umas papeladas, mas deve estar a chegar.
Belisco-me. Será que estou bem? Queres tu ver que o vinho que o Carlos me pôs na mesa tinha 17º?
- Mãe. És mesmo tu?
- Sou filho. Olha, diz à Lia que agradeço, do fundo do coração, a forma tão carinhosa como tratou teu Pai. Fiquei muito contente por o ver tão feliz. Faziam um belo par. Chegou cá com um ar de quem vinha a rir de felicidade. Diz-lhe que fique descansada. Que não se preocupe, pois agora ele vai ter-me a tempo inteiro para o encher de carinhos. Já agora, agradece à Srª Conceição. Foi incansável a tratar das coisas da casa. Com tantas mordomias, apaparicaram-no, e agora eu é que me lixo …
Enquanto minha Mãe falava, ao longe ouvia-se uma vozearia cujo volume ia aumentando. Era percetível quer eram várias pessoas que se aproximavam em conversa viva.
- Estou? Joca?
- Sim. Pai! És tu?
- Está calado rapaz. Já me encontrei com o Saramago e com o Álvaro. Estavam ansiosos por explicações que os pudessem levar a perceber como é que os portugueses ainda não puseram o Cavaco, o Coelho e o Portas a andar. Nem tu imaginas como é difícil explicar, aqui, essas coisas terrenas …
- Olha (diz agora meu Pai e minha Mãe), o tempo da nossa chamada está a acabar. Por isso aqui vão uns recados telegráficos. Para a Guiomar: que ela não se esqueça que é a borboleta da família. Para a Joana: que gostamos muito da forma tranquila como encara a vida. Para a Leonor: que, tal como nós, também os bisavôs Manel e Elvira, nos sentimos embevecidos pela sua vida académica e profissional. Para o Rodrigo: que não há impossíveis e quando o homem quer a obra nasce. Para a Ana e para a Maria: que imaginamos o quão difícil deve ser gerir os impulsos que geneticamente nelas explodem, vindo de famílias como sejam a dos Marques da Costa, a dos Paulinos e a dos Gralheiros, que num determinado tempo histórico representaram regimes e sistemas políticos completamente antagónicos. Mas estamos certos que, como se tem vindo a ver, gerido esse conflito e decidido o caminho a trilhar, a vitória é certa. Assim diz à Ana que é um orgulho ver a forma como se está a empenhar na conclusão do seu Mestrado. Diz à Maria que a melhor maneira para vencer uma tentação é desfrutá-la. À tua irmã Bebé diz-lhe que a honestidade, o trabalho e a competência, como ela tão bem tem vindo a mostrar, são as melhores armas para o sucesso. À tua irmã Quicas, diz-lhe que vale mais rir do que chorar e agora ela é a cabeça de casal…. (enquanto isto diziam ouviram-se risos….). Ao Mário, à Zira e ao Zé, diz-lhes que tenham muita paciência. Tu e as tuas irmãs até são boas pessoas, mas têm cá um grau de loucura que só mesmo com muita paciência é que são aturáveis ….
- Leva este recado àqueles que partilharam as artes do palco com o teu Pai e a luta por uma sociedade mais justa, fraterna, solidária, livre e democrática connosco: eles foram a causa da nossa crença na humanidade. Mesmo quando esmorecia, eles mostravam-nos que valia a pena acreditar e lutar. Porque vale sempre a pena acreditar e lutar, mesmo que nem sempre da luta venha a vitória, não há vitórias sem luta. Àqueles que acompanharam o teu Pai pelos Tribunais, diz-lhe que somos nós, os Advogados, a voz dos que não a têm. A toga que vestimos é a capa que protege os mais fracos. Sem nós não há justiça.
E continuaram:
- Para os que se lembraram, apadrinharam e permitiram que o corpo do teu Pai fosse colocado, para este último adeus, no palco do Cineteatro, o nosso mais profundo e sincero agradecimento. Tal como foi dito aquando da homenagem do passado dia 25 de abril, o teu Pai merecia isto e o Cineteatro também.
- Para todos os nossos familiares, amigos, camaradas, colegas e conhecidos, quer os que vieram a este Cineteatro quer os que não puderam vir, para todos e cada um deles, fica o nosso abraço e esta mensagem: façam o favor de lutar para que esta vida, por mais curta que seja, possa ser, para todos, sem exceção, solidária, justa, fraterna e livre. Numa palavra: feliz. Se assim não agirmos, nada nos distinguirá dos outros animais. E nós queremos uma sociedade de Mulheres e Homens com letra maiúscula, íntegros e verticais no exercício pleno da sua cidadania. O que nos alenta é a eterna e inquebrantável esperança de que o nosso exemplo seja a centelha que alumie esse espírito que se quer crítico, irreverente, criativo, reivindicativo e responsável.
- Estou? Alô? Sim….
Do outro lado da linha ouviu-se o silêncio.
JOÂO CARLOS GRALHEIRO
ABRACINHOOOOO
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