É do lugar cimeiro de cada arco que Santo António, adoptado pelo coração dos lisboetas como padroeiro, testemunha o movimento, a luz e o colorido que vestem a Avenida em noite de marchas.
De contornos controversos quanto à sua forma de afirmação e ao seu modelo, esta festa alfacinha faz parte da vida da cidade e é uma experiência de associativismo, trazendo os bairros à rua num incessante e animado desfile. A concurso, os marchantes, percorrem, entusiasticamente, usando coreografias mais ou menos complexas, aquela “passerelle”. Erguendo os arcos e balões, seguem as figuras, mais ou menos mediáticas, que assumem o papel de padrinhos.
O desfile dos bairros não se inicia, contudo, sem antes entrarem em campo “os miúdos” da Voz do Operário - A marcha infantil que, em 1988, se apresentou pela primeira vez abrindo o desfile, regista, desde aí, a sua presença no início de todas as edições.
É uma marcha diferente – e marca a diferença na sua constituição, nos seus objectivos, na sua organização mas também na sua coreografia e, especialmente, no seu reportório.
A “mascote” das marchas, como é considerada a marcha infantil, faz a abertura da exibição no Pavilhão Atlântico mas é no desfile, sob as mil luzes da Liberdade, que os “miúdos da Voz”, mais brilham.
Em representação de todos os bairros e de todas as crianças da cidade, são os primeiros a enfrentar o público, desdobrando-se em sorrisos, entusiasmo e movimento. A marcha integra variados jogos, corridas, exercícios, brincadeiras ou a composição de quadros adicionais, incluídos na própria marcha, que permitem a integração do elevado número de elementos que a compõem.
São muitos, os miúdos da Voz – muito para além dos 48 permitidos pelo regulamento das marchas – crianças cuja idade oscila entre os 6 e os 12 anos, tendo por mascotes um menino e uma menina, de 3 ou 4 anos. Em 2005, já Vitor Agostinho, coordenador e ensaiador da marcha infantil e director geral da Voz do Operário, explicava o facto ao jornal A Capital: “não há selecção para não desiludir as crianças – este ano são 60 – serem mais ou menos depende das desistências ao longo dos ensaios – os marchantes não oficiais andam «por fora» como apoios a fazer marcações complementares.”
Os pequenos marchantes recebem os aplausos inaugurais de todas as claques, coleccionando manifestações bastante elogiosas com referências à ingenuidade, à ternura, ao carinho, mas também à tenacidade, à coragem e ao exemplo que é dado.
No final não há prémios, nem classificação, nem menções honrosas, vitória ou derrota – há a satisfação de se organizarem, participarem e representarem toda a cidade. Mas, principalmente, como recorrentemente é referido pela organização, há a preocupação de cumprir os objectivos a que a marcha infantil se propôs: ensinar e reviver a tradição e as realidades da cidade recriando profissões e modos de vida; incentivar as crianças à participação; tentar incutir, aproveitando o consenso que a marcha infantil gera, outra mentalidade nos bairros; veicular um projecto pedagógico através dela e identificá-la com a Voz do Operário enquanto instituição ligada ao conhecimento e à aprendizagem; intensificar a relação de pertença no reforço da identidade alfacinha.
O desfile na Avenida, culminar de um trabalho exaustivo, passa pela persistência e empenho, pela motivação e entusiasmo dos miúdos, mas também dos graúdos. O processo de organização é desenvolvido, desde a primeira realização, por uma Comissão organizadora constituída por um conjunto alargado de pessoas que, sendo de diferentes áreas de actividade, contribuem de forma voluntária para este trabalho colectivo de assinalável valor. São elementos da direcção, associados, trabalhadores, encarregados de educação, professores e amigos da instituição que tomam, a cargo as inscrições das crianças, a marcação e desenvolvimento dos ensaios, as reuniões, os contactos, a confecção dos figurinos, a construção dos arcos, os adereços, a coreografia e a concepção das letras e das músicas.
É um trabalho feito “em casa”, com muito da “prata da casa” para, posteriormente, se projectar a partir daí para toda a cidade, na certeza de que no ano seguinte, com o mesmo empenho e dedicação, cumprindo os mesmos objectivos se repetirão os ensaios diários, de Abril a Junho, no recinto desportivo da Voz do Operário e o grande desfile na Avenida.
Os ensaiadores – Vitor Agostinho e Sofia Cruz custam a fazer-se ouvir. O entusiasmo nos ensaios é grande, mas a dispersão e a brincadeira também o são. As estruturas em madeira usadas nos ensaios (simulações dos arcos que são confeccionados na oficina improvisada na Voz e que hão-de suportar os símbolos de Lisboa e o da própria Voz do Operário), servem muitas vezes para dar corpo a pequenas disputas e “braços de ferro” entre os marchantes. A algazarra e a movimentação constantes fazem duvidar que o barco seja levado a bom porto. Mas os timoneiros nunca desistem: “Não quero ouvir ninguém a falar. Quero ouvi-los a cantar” – Vitor Agostinho. “Vamos lá marchar. Está tudo na conversa” – Sofia Cruz
E lá vão ensaiando as marcações e aprendendo a coreografia.
O tema escolhido, anualmente, é indissociável das figuras a representar e da coreografia. As figuras devem potenciar o interesse das crianças e a coreografia deve ser criativa e dinâmica tendo, também, que comportar momentos em que todos participem e isso, como refere Vitor Agostinho, consegue-se introduzindo jogos ou brincadeiras em conjunto. Em 2003, a marcha infantil recriou um quadro de recreio da escola que até tinha o jogo da macaca.
A criatividade das coreografias também pode ser expressa pelos elementos surpresa introduzidos. Foi o caso de 2009, em que as crianças surpreenderam o público distribuindo sopa de fava-rica nas bancadas.
Talvez por tudo isto se verifique que, amiudadas vezes, se recorre às representações de vendedeiras dos mais diversos produtos que davam colorido às ruas de Lisboa. A figura da vendedeira é, genuinamente, uma figura de agitação e comporta uma certa cor, se não pelos trajes que eram usados, pelo menos pelos pregões cantados e pela constante interacção com os clientes.
Todo este movimento é envolvido num invólucro musical composto por três temas, além da Grande Marcha de Lisboa (obrigatória para todas as marchas). Interpretam-se, anualmente, uma ou duas marchas inéditas, recuperando-se mais uma ou duas, dependendo dos anos, do significativo reportório, tendo em consideração que a marcha canta há já 26 anos.
Os criadores das letras e músicas são uma referência no panorama musical português. Os temas musicais, também de acordo com os figurinos, são variados e repletos de imagens festivas e pueris. Os exemplos são ricos pelos vocábulos utilizados para falar das varinas, peixeiros, leiteiras, aguadeiros, ferro-velho, cauteleiros ou para falar da escola e da felicidade.
“Queremos um dia que não vem no calendário/e ser felizes na Voz do Operário” – Esta marcha, da autoria de José Jorge Letria (letra) e Carlos Alberto Moniz e Braga Santos (música), assume mais do que uma designação podendo ser referida como “Queremos um sol” ou “Queremos um dia” ou, ainda, “Calendário”, no entanto, ela é repetida todos os anos, desde 1988, e é considerada como o Hino da Voz do Operário.
O que importa relevar é que, mais de meio século (64 anos) após o início das Marchas de Lisboa enquanto cartaz cultural e turístico das Festas da Cidade, se alargou o fenómeno das marchas ao universo infantil. O evento não mais deixou de se realizar e ao longo dos 26 anos da sua existência (1988-2013). Enalteceram-se as figuras do povo que deram razão e vida à Sociedade que ainda hoje, com 130 anos de existência, se recusa a esquecer as origens. A prova da vontade em retomar a memória, valorizando a actividade que originou a Sociedade surgida a partir de um jornal, é o recurso à representação do ardina com alguma recorrência.
Em tempos que muitos consideram ser de esmorecimento do associativismo popular, a Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário – instituição centenária de referência no panorama do associativismo lisboeta - parece ter sabido revitalizar o seu projecto associativo – a emergência e continuidade da marcha infantil faz parte do processo de redefinição da instituição.
Nas diversas actividades que a Voz do Operário organiza e promove, a marcha infantil é, talvez, a par da escola, a que mais visibilidade dá à instituição. Veicula um propósito pedagógico que pretende reforçar a identidade local e o interesse pelo património imaterial ligado ao imaginário urbano.
A sua criação é um sinal de futuro. Sensibilizar a comunidade para o significado de um corpo de baile, efémero e paradoxalmente duradouro pela repetição, que desfila em primeiro lugar na Avenida, promovendo a história dos bairros, da cidade antiga e das profissões populares, parece ser receita de sucesso para a continuidade do projecto da Voz.
Santo António continuará a testemunhar, do alto de todos os arcos, a tenacidade, o empenho e a dedicação dos miúdos da marcha da Voz do Operário
Ana Isabel Carvalho
(pré-publicação de artigo que sairá no nº 14 da revista ALDRABA, actualmente no prelo)
A letra está excessivamente minúsculas. Eu, que sou míope, não quero esforçar a vista a tentar ler...agradeço que o texto seja reproduzido, com letra maior. Abraço.
ResponderEliminarLFM