Na edição de hoje do "Expresso", a cronista Clara Ferreira Alves refere-se de modo expressivo à devastação de muitas realidades nacionais que tem visitado, designadamente no domínio patrimonial, fruto da desestruturação das respetivas sociedades.
Saibamos nós, em Portugal, resistir a este processo transversal.
Humana falência
Por vezes, visitamos um
país em apuros e somos levados por uns locais cheios de nostalgia a ver as
glórias do passado, projetos de arquitetura com a monumentalidade incompleta,
do tempo em que havia dinheiro e ambição. Uma certa independência que viria a ser
mal administrada, descambando numa sujeição ao estrangeiro que atrai o
nacionalismo destrambelhado.
Aconteceu-me
na Venezuela, no Egito, na Argentina, no Iraque, noutros lugares, antes dos
golpes e das crises, das bancarrotas e das intervenções financeiras, antes das
guerras e das invasões, dos feridos e dos mortos, antes das disputas religiosas
e tribais, antes dos fundamentalismos e dos desvios extremistas da
geoestratégia e da política local que conduziram a uma mentalidade de barricada
com corrupção desenfreada e à construção de plutocracias ou de oligarquias
civis e militares.
Que oscilam entre esquerdas
e direitas com a velocidade de uma porta giratória sem travão. Países
arruinados no período pós-colonial, com a cumplicidade própria e a ganância
epicurista dos que sabem que não são donos do seu destino e podem ser
comprados. Naipaul escreveu sobre este mundo.
Uma universidade que não chegou a ser ou ainda é, mas onde as
paredes perderam a cor e se desfazem ao tato, um bairro social inacabado
rodeado de barracas, um centro comercial deserto, um monumento meio
reabilitado, um templo que sugou o dinheiro e faz justiça ao mau gosto, um
museu com nichos vazios e obras-primas empilhadas e cobertas de poeira, sem
vigilância nem inventário, uma estátua coberta de graffiti numa praça que assistiu a cenas de violência,
murais gigantescos com heróis desbotados e esburacados pelas balas.
É um espetáculo de humana
falência, e pensamos que tudo aquilo se passou num tempo curto, umas décadas de
maus governos e de maus atores. Uma vez instalada a decadência torna-se quase
impossível invertê-la. Os candidatos da mudança começam a ser piores que os
anteriores, criados num ninho de falsas equivalências e pelejas territoriais
que geram os homens sem qualidades.
Clara Ferreira Alves, in
“Expresso”, 7/7/2023
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