Palavras de enorme significado e oportunidade que, apesar da sua extensão, achamos que devem aqui ser reproduzidas:
DESAFIO E CIRCUNSTÂNCIA
1.
Muito obrigada, Senhor Presidente da República, por me
ter convidado a juntar-me às Celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades Portuguesas, neste ano de 2025. Não estava no meu horizonte, mas
agradeço-lhe.
Os países escolhem datas de referência para celebrarem
a sua História, contemplando memórias de batalhas, ações de independência,
encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a
unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data
da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais
relevante.
Muito se tem discorrido sobre o significado desta
nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um
sinal de melancolia, mas sim do seu oposto – a assunção de que um poeta do
século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adotada no
seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo. E que a própria
biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português,
mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre
a Terra. A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se
encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como
exemplo da proximidade que os portugueses, que se encontram longe, mantêm com a
sua cultura de origem. O país retribui-lhes reconhecendo desde há muito que as
Comunidades Portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário.
Mas as Celebrações deste ano de 2025 têm um cunho
muito particular. Em primeiro lugar porque voltam a ter lugar na cidade de
Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados vinte e nove
anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que
mudou, e o que justifica que de novo tenha sido escolhida para ser palco das
celebrações, foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar
obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos
séculos.
É sabido que Lagos, lugar de saída para África, e
lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de
Sagres. A escassos quarenta quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam
historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação. A
comunicação digital que se afirmou a partir dos anos noventa, permite agora uma
divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores
estão a realizar neste espaço geográfico antes designado por Terras do Infante.
Era altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade merecedora
de acolher estas celebrações, e de fazer refletir a sua importância
como polo aglutinador de interesse cultural.
Mas há outro motivo para que este ano a Celebração
deste Dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a evocar o
nascimento de Camões, ocorrido há quinhentos anos, presume-se que entre 1524 e
1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto,
pois tal como não sabemos como decorreu a sua infância nem a sua formação,
também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos,
sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um célebre maestro
disse sobre Beethoven – Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu.
2.
Nunca mais morreu.
Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido
revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo
da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal
têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno
do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido atualizando a exegese sobre os
seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem
ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel
decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um
pensamento novo, que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa Moderna
que hoje usamos. Demonstrou como a Língua Portuguesa, manobrada no seu
esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao “grande cantor do Oceano”
como lhe chamou Baltazar Estaço.
Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita
recente profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa
de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando
que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida afinal não são
lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da
realidade testemunhada. E assim, a mim não me pareceria errado que os
adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índico
redigiu na margem de um exemplar de Os Lusíadas presumivelmente
oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade – “Yo
lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una sabana con que cubrirse (…)
después de haber navegado 5.500 leguas per mar.”
Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe
enviaria a sabana, já depois de morto. Não me parece que daí se
devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida
humana e o seu mistério, isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra
que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a
dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores mais
subtis, disse recentemente numa entrevista que se Camões tivesse continuado a
viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso.
Essa hipérbole é linda.
Assim como é reconfortante saber que os professores
deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de
Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os
portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.
3.
Mas se o patrono destas Celebrações é o poeta do
virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do
questionamento filosófico e teológico como é em Sobolos Rios que Vão,
e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao
regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos,
encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que
atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu.
Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição,
assistiu ao fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no
conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas,
vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então.
Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo
enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um
povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto conter a
condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse
mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema
que no fundo justifica que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões,
expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII três
dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante
dezasseis anos, e, no entanto, os três desenvolveram obras notáveis de resposta
ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare,
Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à
anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que
continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder
cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.
No caso de Camões, de que se queixa ele quando
interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha
realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral.
Mencionava o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos
obriga, e evocava entre os vários aspetos da degradação o facto de
sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido,
homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso,
queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade
intelectual que resultava, depois, na prática, na degradação dos atos do dia a
dia. Escreve o poeta no final do Canto VIII – Este deprava às
vezes as ciências, /Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta
mais do que sutilmente/Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa os
perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis…
4.
Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos
diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo
histórico dos impérios em que viveram. Por essa altura, sobre os reis de
Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo
domínio do Globo Terrestre. Ou, mais concretamente, dizia-se então que os
três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se
fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é
possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia,
assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu
Shakespeare no Acto IV do Rei Lear – É uma
infelicidade da época que os loucos guiem os cegos.
Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do
alucinado Dom Quixote de la Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso
irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não
falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas
escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O
desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das
últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o
pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que
neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada que diga apenas
respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento
de um novo tempo que está a acontecer à escala global.
Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à
velocidade dos meteoros, e estamos cercados de fios invisíveis que nos
ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao
tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O
poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao
irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é
disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se
tratasse de um berloque. E os cidadãos? São público que assiste a espetáculos
em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil designação
de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e
por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome
de um poeta por patrono.
5.
Por isso mesmo, também, vale a pena regressar a Lagos.
Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para
o mundo. No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para
Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O
Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com achamento de
ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa
antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade
empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros.
À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela
Terra inteira, e a lenda coloca-o a meditar em Sagres. Numa referência um tanto
imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu – Ali
vimos a veemência do visível/ O aparecer total exposto inteiro/E aquilo que nem
sequer ousáramos sonhar/Era o verdadeiro.
Esta ideia de que na mente do Infante se processou uma
epifania anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa, mais ou menos
informal, que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou assim
para a História e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que
mudaria o Mundo. Mas existe uma outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia,
o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos
Descobrimentos, não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.
É verdade que a deslocação coletiva que permitiu
estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o encontro
entre povos, obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo
inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade. É preciso
sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um
processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se
verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E
é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo
de escravização longo e doloroso. Lagos, precisamente, oferece às
populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do
seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo da reposição da verdade, e do
remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro
intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de
África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos
que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final
do século XIX.
6.
Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como num
dia de agosto de calor tórrido de 1444, aqui desembarcaram 235 indivíduos
raptados nas costas da Mauritânia, e como foram repartidos e por
quem. Alguém que muito prezamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o
seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o
Infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.
Lagos também mostra o local onde depois, em levas sucessivas, iriam ser
mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao
lixo, quando morriam, sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram
retirados desse monturo os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta.
Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por
isso estejamos aqui no Dia de hoje.
Aliás, a Unesco criou a Rota do Escravo, e inscreveu
Lagos na Rota da Escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem
uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os
princípios do Amor e sob a Lei dos Direitos Humanos. Lagos mostra esse filme e
faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio
moderno o pedido solene – “Homens não se matem uns aos outros”.
7.
É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia
8 de agosto de 1444 porque o cronista do Infante Dom Henrique o narrou. Eanes
Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e
comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilhas dos escravos era
cruel. Felizmente que dispomos dessa página da Crónica dos Feitos
da Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo
semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que sempre houve quem
repudiasse por completo a prática e o teorizasse. Numa das paredes de um
dos museus de Lagos está escrito o testemunho de um autor quinhentista que
denuncia a injustiça – “… eles não nos ofendem, não nos devem, nem
temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra, não os podemos
cativar nem comprar”.
O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do
Infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a
consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta
tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa,
contemporânea. Em Lagos, hoje em dia, está presente, de outro modo, a
mensagem do cartoon de Simon Kneebone datado de 2014 que
tem corrido mundo – A cena é nossa contemporânea, passa-se no mar. Num
navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre está um
tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de
migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta – De onde
vêm vocês? Da lancha apinhada alguém responde – Vimos da
Terra. Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores
braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços
à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas
quando vão ao mar.
8.
Consta que, em pleno século XVII, dez por cento
da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos
tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos
miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro, a falácia
da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é
uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do
branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do
escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado.
Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as
feridas.
A consciência dessa aventura antropológica talvez
mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje,
um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo
e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro
próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem
sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta – Quando ficarem em
causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os
pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma,
que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano?
9.
Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais
morreu.
Regresso à sua obra para procurar entender que
conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a
sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugados.
A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com
essa mesma ideia, ao terminar o Canto I de Os Lusíadas”, Camões
define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos –
“Onde pode acolher-se um fraco humano,/onde terá segura a curta vida,/Que não
se arme e se indigne o Céu sereno/Contra um bicho da Terra tão pequeno?”
Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o
da grandeza da solidão do ser humano e a sua luta estoica centrada na confiança
em si mesmo. Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade
orgulhosa, que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da
vida, o corpo de Camões só teve um lençol, e oferecido, a separá-lo da
terra. A sorte do seu corpo não difere muito daquela que mereceram os
corpos dos escravos de Lagos. Mas, entretanto, no século XIX, o direito à
proteção beneficiada pelo estado começou a emergir, criaram-se documentos
essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois das duas Guerras
Mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos, e
durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um
pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.
O conceito da representatividade respeitável da
figura de chefe de estado oriundo do povo grego, princípio que sustentou a
trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou, depois, o
princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com
que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida.
A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido
passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais
ofende. Um chefe de estado de uma grande potência durante um comício pôde dizer
– Adoro-vos! Adoro os pouco instruídos! E os pouco instruídos
aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia do ser humano? Como
proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?
Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades,
não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar
como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de
ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?
Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e
injustos, mas ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura, e terminámos
com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos, e com eles estabelecemos
novas alianças, e criámos uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, e
fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma União de países livres
e prósperos que desejam a paz. Assim sendo, por certo que ainda não temos
as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a
força.
Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me
com o seu destino, porque, se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi
génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser
humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa
certa.
Muito obrigada.
Lagos, 10 de junho de 2025.
Lídia Jorge